sexta-feira, dezembro 07, 2007

A Grande Guerra e a falência da República

Por Noémia Malva Novais
INTRODUÇÃO
Se considerarmos, como Fernando Rosas, que o século XX português se estrutura, no que se refere à sua história política, em três ciclos fundamentais – o longo ciclo da crise final do sistema liberal-oligárquico (1820-1926), o ciclo do autoritarismo (1926-1974) e o ciclo da democracia (após 1974), situar-nos-emos, para os objectivos deste trabalho, no primeiro dos ciclos, especificamente no período da I República, e deter-nos-emos, especialmente, na problemática da Grande Guerra, porquanto estamos em crer que a intervenção de Portugal na guerra, e o seu desenlace, definido na Conferência da Paz, foram decisivos para a falência da República.
A República nascera em 1910 como uma espécie de ideia convertida em sonho, com “estranhas ressonâncias na alma do povo”, que lhe augurava “um futuro de grandeza nacional, cimentado nos princípios da liberdade e da democracia”. Bastou que em Lisboa se proclamasse a República para que quase todo o país aderisse. Como previra João Chagas, “na província, a República foi “implantada por telégrafo”.
Herdeira da cultura política resultante do Ultimatum (1890), caracterizada essencialmente por uma espécie de medição de forças, primeiro entre monárquicos e republicanos, depois entre facções republicanas, a República acabou por se tornar num dos mais longos períodos de instabilidade política e social da história contemporânea de Portugal. Em 1914, quando a Primeira Guerra Mundial eclodiu, a República viveu um momento difícil, que proporcionou à opinião pública da época – uma opinião pública restrita, evidentemente – o conhecimento das lutas político-partidárias dos principais intervenientes na discussão acerca do futuro próximo de Portugal.
Na verdade, a deflagração da guerra surpreendeu todos. O efeito da surpresa não foi, no entanto, o mesmo em todos os sectores da vida nacional. As principais forças políticas portuguesas tiveram reacções diferentes face ao conflito armado. Intervencionistas e anti-intervencionistas defrontaram-se no Parlamento e na imprensa, procurando influenciar a opinião pública face à guerra em que, dois anos mais tarde, Portugal haveria de participar activamente.
A questão de intervir ou não na guerra foi, assim, “o grande pomo da discórdia da primeira República”. Existiam duas correntes de opinião: os intervencionistas (guerristas), apoiantes da entrada imediata de Portugal na guerra, uns partidários dos aliados, outros da Alemanha (estes “uma ínfima minoria, sem qualquer peso no país: era o caso de alguns monárquicos”); e os anti-intervencionistas (antiguerristas), defensores da não intervenção do país no conflito armado.Para os primeiros, a participação na guerra ao lado da Inglaterra “reanimaria a velha aliança e quebraria o isolamento de Portugal”. Os principais defensores desta orientação eram os republicanos democráticos que constituíam a maior força política do país e dominavam o aparelho de Estado. Os anti-intervencionistas defensores da neutralidade, eram, sobretudo, os monárquicos, os republicanos unionistas, alguns sectores do exército e a maioria do país “que se opunha naturalmente à participação num conflito cujas causas lhe escapavam”.
A estratégia intervencionista “assumia a defesa de interesses nacionais e objectivos de ordem externa […] como a garantia da integridade colonial em África, a soberania nacional face à Espanha e a conquista do prestígio internacional do regime”. Mas “perseguia igualmente objectivos de ordem interna” e aproveitou a conjuntura internacional criada pela guerra, acreditando que “só uma ameaça externa e uma intervenção militar na guerra em larga escala poderia justificar o sacrifício de todas as fracturas e facções internas em função do interesse e da unidade nacional”.
Desde o início da guerra, os intervencionistas tiveram, no entanto, de enfrentar “uma corrente tenaz na sua oposição e uma enorme maioria do país que não podia compreender o sacrifício que lhe era pedido de acudir aos campos de batalha”. O seu argumento de base era o de que no intervencionismo “ia denunciar-se uma acção unilateral, que nem o conteúdo específico da aliança inglesa, nem a vontade expressa de Londres reclamavam”.
Perante esta demonstração da instabilidade que se instalou no país e que impediu a coesão nacional necessária perante as dificuldades decorrentes da guerra, a situação interna e externa de Portugal acabou por ser qualificada como de decadência ou de decomposição. Os países mais fortes da Europa, nomeadamente a Inglaterra, a França e a Alemanha, mediam a agonia de Portugal como mediram a da Turquia. Do lado espanhol, aguardava-se que, perdidas as colónias, Portugal perdesse a sua razão de ser, a sua categoria de estado soberano, para a Espanha se poder apresentar como a legítima herdeira do espaço geográfico português. Até já se tinham estudado os argumentos: dir-se-ia que Portugal encontraria na união com o país vizinho a sua salvação.
Mas, na realidade, a situação de Portugal interessava também a Inglaterra. A Espanha, consciente do interesse inglês, moveu-se sempre em estreita ligação com a Inglaterra. De modo que, durante a guerra, a Espanha, que se declarara neutral desde o início, arvorando-se em eventual medianeira na hora da paz, continuou o debate acerca do futuro da beligerante República portuguesa. Nesta fase, o problema da decadência da República ganhou especial interesse para os espanhóis partidários da Alemanha, porquanto Portugal decidira participar na guerra ao lado dos aliados. Se os aliados perdessem a guerra, Portugal perderia as colónias. A Espanha acreditava que, sem o império colonial, as finanças arruinadas pelo esforço belicista e a população nas ruas a exigir melhores condições de vida, Portugal desintegrar-se-ia e a Alemanha seria uma aliada indiscutível da Espanha na hora da união ibérica.Esta campanha iberista produziu uma intensa reacção em Portugal, reanimando o espectro do perigo espanhol, imediatamente aproveitado para fins claramente partidários. Os monárquicos acusaram que os desvarios da República alentavam, de novo, a questão ibérica, ao mesmo tempo que defenderam que a monarquia era a solução lógica para a falência do regime vigente. Os republicanos, sobretudo os democráticos, fizeram eco na imprensa republicana da sua oposição à ditadura de Pimenta de Castro (1915), considerando que antes dela as nossas relações internacionais eram as melhores, razão pela qual a ameaça espanhola estava, pelo menos, calada.
As intenções espanholas, devidamente exploradas por republicanos e monárquicos, despertaram um clima de temor entre a opinião pública portuguesa. Este temor só acalmou depois da revolução de 14 de Maio de 1915, mesmo assim, nunca foi apagado. Mas será que Portugal corria um risco efectivo de perda da sua independência? A opinião pública aceitava a ameaça. Os políticos sentiam o perigo, exploravam-no habilmente e acabaram por apresentar a participação de Portugal na guerra ao lado da Inglaterra, no cumprimento da velha aliança, como a única garantia de independência.
Na verdade, a conjuntura bélica acabou por conduzir os governos dos dois países ibéricos à defesa da necessidade de manutenção de relações amistosas. Portugal decidiu envolver-se na Grande Guerra, mobilizou cerca de 100 mil homens, dos quais perdeu cerca de 10 mil e viu regressar alguns milhares de feridos. A Grande Guerra gerou uma catástrofe nacional: os custos económicos e sociais foram muito superiores à capacidade nacional; os objectivos intervencionistas foram gorados na totalidade; a unidade nacional não foi alcançada e a instabilidade política aumentou de intensidade.
É, por isso, que os estudos produzidos pela historiografia portuguesa contemporânea concordam, de um modo geral, em que a participação de Portugal na Primeira Guerra Mundial, decorrida entre 1914 e 1918, foi o golpe final na República. Contudo, há algumas vozes discordantes. O historiador António Reis, por exemplo, escreveu recentemente a sua posição relativa a esta matéria, concluindo que “a crise desencadeada pela participação de Portugal na Grande Guerra não foi uma crise fatal”. Ora, na verdade, no final da guerra, assistiu-se ao “súbito reforço do campo conservador e autoritário, com o trauma nunca superado do acidentalmente breve consulado sidonista”, viveram-se graves dificuldades económicas e financeiras, períodos de grande agitação social, intensificação da instabilidade governativa, circulando, na opinião pública, uma espécie de pensamentos em voz alta, sinónimos de uma certa tentação militarista.
Todos estes elementos caracterizadores da crise final da I República parecem enraizar-se na polémica e contestada decisão dos intervencionistas de conduzir Portugal ao palco europeu da Grande Guerra. O que tentaremos verificar, ao longo deste trabalho, é se existe mesmo uma relação de causa – efeito entre a intervenção de Portugal na guerra e a falência da República. No fundo, procuraremos aferir se a não intervenção no conflito armado teria salvo o regime republicano e descortinar até que ponto poderão existir, na política interna portuguesa, outros factores explicativos da queda da República. Para o efeito, cruzaremos os resultados das investigações produzidas pelos mais conceituados historiadores da História Contemporânea de Portugal com as conclusões da nossa própria investigação documental em sede do Arquivo Histórico-Diplomático do Ministério dos Negócios Estrangeiros.
1. A INSTABILIDADE POLÍTICA
No final da Guerra, o ambiente de instabilidade política que assolou toda a Europa, atingiu Portugal de forma dramática. Na verdade, depois da implantação da República, foi a Grande Guerra que traçou “a marca mais profunda na sociedade portuguesa” da segunda década do século XX. Foi devido às dificuldades resultantes da intervenção portuguesa no teatro europeu das operações bélicas que foi possível o golpe de Sidónio Pais (5 de Dezembro de 1917) que, apesar de se ter traduzido num breve consulado (até 18 de Dezembro de 1918), abalou as instituições republicano-liberais, inaugurando uma época de instabilidade governativa sem precedentes (14 governos entre Maio de 1919 e Janeiro de 1922).
É claro que podemos recordar o falhanço da União Sagrada, que já tornara claro que nem um perigo comum era suficiente para unir os portugueses, e, nunca é demais lembrar a derrota da solução democrática de Afonso Costa, bem como o isolamento a que foi remetido, alegadamente devido à sua ânsia de levar Portugal à guerra. Qualquer destas situações, já evidenciara a existência de um clima conspirativo que minava a política da República. No entanto, o facto das Forças Armadas, que os intervencionistas afirmavam pretender dignificar com a intervenção na guerra, se terem dividido e terem desautorizado o poder político civil e auxiliado o golpe e a subida ao poder de Sidónio Pais, comprova que a guerra condicionou a vida do país.
Podemos reflectir que a subida ao poder de Sidónio Pais não provocou qualquer alteração da situação diplomática de Portugal, no entanto, não podemos deixar de frisar que o governo sidonista não se livrou das suspeitas internacionais de germanofilismo e iniciou “um novo rumo para a política de guerra, em particular no que respeita à vertente militar”.
1.1 A política de guerra sidonista
Logo em Janeiro (1918), Sidónio Pais assinou uma nova convenção com a Inglaterra, através da qual alterou a composição do Corpo Expedicionário Português (CEP), reduzindo-o a uma única Divisão, tacticamente dependente do governo inglês. Se “era grande o significado militar desta alteração, o significado político era ainda maior”. Para os militares do CEP, mais grave que a redução dos efectivos era a questão do roulement. Na prática, esta decisão de Sidónio Pais, para a qual contribuiu o corte de transportes pela Inglaterra, significou que deixou de se fazer a rendição do contingente e o reforço das tropas. Daí que seja vulgarmente aceite que a participação portuguesa na Grande Guerra foi “particularmente penosa no período sidonista. Foi neste período que Portugal sofreu as suas humilhações de guerra”.
As consequências desta política de guerra não se fizeram esperar. No campo de batalha, “o desgaste físico provocado por longos meses nas trincheiras, o corte das licenças, a dureza do Inverno, a crescente intensidade e frequência dos ataques inimigos e a falta de reforços, foram agravando o moral das tropas portuguesas”. Neste contexto, grassou a indisciplina e a deserção, de que resultou a condenação de quase 400 militares do CEP em 1918.
A situação das tropas portuguesas no front, a que não eram alheios os alemães, degradou-se ainda mais, a partir de Março de 1918, com a intensificação dos ataques inimigos. As deficientes condições do CEP eram tão evidentes que a Inglaterra decidiu retirá-lo da frente. A rendição estava marcada para o dia 9 de Abril. Porém, a intervenção da Inglaterra já não foi necessária. Os alemães bombardearam as tropas portuguesas, em La Lys, nesse mesmo dia 9, destroçando o exército português.
Portugal vivia sob o efeito das consequências directas desta política de guerra quando Sidónio Pais foi assassinado. O país mergulhou, imediatamente, numa profunda crise política. De acordo com o sistema presidencialista de Sidónio Pais, o Presidente da República deveria ser eleito por sufrágio universal e por um período de quatro anos, mas o Presidente da República Canto e Castro fora eleito pelo Parlamento e para cumprir o que restava do mandato de Bernardino Machado, que fora demitido aquando do golpe sidonista. Tratara-se de uma situação atípica que motivara mesmo João Chagas a apelidar Canto e Castro de “usurpador”.
Os republicanos capitalizaram rapidamente o apoio de muitos veteranos que se voltaram contra a ditadura sidonista. “Afinal haviam sido traídos pelos monárquicos que apoiaram os regimentos militares que se recusaram a partir para França”. Perante este cenário, o ano de 1919 começou, em Portugal, a “ferro e fogo”. Sidónio Pais confiara postos militares e cargos civis a monárquicos que, neste contexto, viram chegada a oportunidade para darem o salto definitivo e se apoderarem do poder pela força. Comandados por Paiva Couceiro, concretizaram o sonho que acalentavam desde 1910: restaurar a Monarquia. Como Lisboa lhes levantava algumas dificuldades, foram restaurar a Monarquia ao Porto (19 de Janeiro de 1919), onde a conspiração monárquica reinava desde o golpe de Sidónio Pais.
Ora, se a política de guerra sidonista já tinha produzido os mais pesados estragos, a morte do ditador, ao favorecer as intenções couceiristas, agravou a crise em que o país mergulhara, lançando-o numa profunda guerra civil.
Aos monárquicos associaram-se, então, alguns militares e mesmo alguns sidonistas que defendiam uma solução de tipo militar para o governo do país, pelo menos até ao fim dos trabalhos da Conferência da Paz que decorria em Paris. Na realidade, uns e outros não pretendiam mais do que impedir o regresso previsível dos democráticos ao poder. Contudo, a maioria dos sidonistas não se revia no projecto realista, pelo que não se associou aos monárquicos.
Por seu lado, o exército regressado dos campos de batalha, embora se encontrasse fraccionado a nível político, acabou por apoiar, maioritariamente, o regime republicano. Os militares não aceitavam, de modo nenhum, o regresso ao poder dos monárquicos que, como vimos anteriormente, os haviam traído. Os monárquicos acabaram por ser derrotados em Monsanto.
1.2 A ‘incompetência’ das direitas no pós-sidonismo
Entretanto, já sem a ameaça monárquica, Portugal tinha de assumir a responsabilidade resultante da participação na guerra. Foi, por isso, que José Relvas constituiu um governo que, além de pretender apaziguar a política interna, almejava participar com sucesso nas negociações internacionais decorridas na Conferência da Paz.
A situação resultante da participação portuguesa na guerra dominou as preocupações de José Relvas que constituiu um governo de salvação republicana, integrando sidonistas moderados, socialistas, democráticos, unionistas, evolucionistas e independentes. Foi seu objectivo fortalecer a posição internacional do governo e alargar a base social de apoio da República na luta contra os monárquicos. Desta vez, a República ainda contou com o apoio da rua e com o beneplácito da direita conservadora que, perante o desaparecimento de Sidónio Pais, recuou na sua investida contra o regime republicano-liberal.
Na verdade, as direitas que, nas “crises cruciais do liberalismo posteriores à implantação da República”, como esta crise da Grande Guerra, “confluem e em certa medida confundem-se num equilíbrio estável para, num primeiro momento, conspirar e derrubar o regime”, dividem-se quando se trata de constituir um projecto comum, bem como de “estabelecer as bases doutrinárias e as orientações políticas do novo poder”. Foi, por isso, que, como acentua Fernando Rosas, fracassou a experiência sidonista. As direitas não sabiam ainda como deveriam agir para conservar o poder. Souberam dividir os sidonistas e os militares, no sentido de ficarem em maioria, mas, como não tinham a experiência da sua própria unidade, não conseguiram conservar o poder.
Os democráticos aproveitaram este contexto de derrota da tentativa de restauração monárquica, de desagregação do sidonismo e de divisão das direitas para recuperarem alguma popularidade, que lhes permitiu regressar ao poder em Maio (1919). Durante algum tempo, acreditou-se ainda na capacidade de regeneração do regime. Porém, a Grande Guerra legara uma herança demasiado pesada. Para além da manutenção do império colonial, os outros objectivos intervencionistas falharam todos, e a Conferência da Paz saldou-se por um insuficiente “reconhecimento internacional do jovem regime republicano português – pior tratado do que a Espanha não beligerante, como amargamente se queixou Afonso Costa, e privado das adequadas e justas compensações financeiras”.
1.3 A emergência da esquerda republicana
A instabilidade governativa continuou a ser uma constante no pós-guerra, tendo mesmo aumentado de intensidade. Aliás, esta instabilidade apresenta características diferentes da instabilidade existente no período anterior ao conflito bélico. Enquanto, no período anterior à Grande Guerra, a instabilidade dos governos era, muitas vezes, criada, pelo problema do “acesso político”, no pós-guerra, a política económica tornou-se um factor decisivo na governação. Neste período, os grupos de interesses já desempenhavam “um papel relevante na formação e na queda de governos”. Evidentemente que o facto de, no pós-guerra, terem desaparecido, do sistema partidário, alguns dos seus líderes históricos - Afonso Costa, António José de Almeida e Brito Camacho, respectivamente chefes políticos dos democráticos, evolucionistas e unionistas – também fragilizou os governos.
Para esta fragilidade governativa contribuiu ainda o Partido Democrático que, no rescaldo da Grande Guerra, decidiu assumir-se como “partido situacionista por excelência, centrista, conservador”, acabando por sofrer dissenções à esquerda e à direita. Desta fragmentação, emergiu, “pela primeira vez, o que se pode considerar uma esquerda republicana”, constituída por um conjunto de grupos políticos, como o Grupo Popular, o Partido Radical, a Esquerda Democrática, os intelectuais da Seara Nova, “que se reconhecem num programa político, económico e financeiro razoavelmente coerente”.
Através de uma aliança – instável, é certo – com os partidos ou os sindicatos operários e do apoio militar da Marinha e da GNR, esta esquerda conseguiu passar “esparsa e caoticamente pelo poder até à «noite sangrenta» de 19 de Outubro de 1921”, e, como acentua Fernando Rosas, entre Dezembro de 1923 e Fevereiro de 1925, nos ministérios de Álvaro de Castro, Rodrigues Gaspar e José Domingues dos Santos, tentou “levar à prática a sua política económica e financeira de resposta à crise que o país atravessava”.
Esta esquerda pretendia atingir o equilíbrio orçamental e foi mesmo capaz de adoptar medidas nesse sentido, porém, “o reencontro do republicanismo com um projecto nacional de governação à esquerda, por contraste com o centrismo situacionista dos «bonzos» do PRP que dominava a vida política ou com a indisfarçada conspiração das direitas autoritárias, padecia de debilidades graves que se demonstraram inultrapassáveis”. Estes grupos de esquerda não conseguiram ser uma força política forte, coesa e com uma representação parlamentar capaz de lhes permitir a autonomia necessária para governar com estabilidade. Neste contexto, a maioria parlamentar do PRP, como escreve Fernando Rosas, “deixava-os governar quando não lhe convinha fazê-lo, mas derrubava-os mal entendia ser a altura de regressar ao poder”. Foi assim que o PRP derrubou o governo «canhoto» em Fevereiro de 1925 e, daí em diante, iniciou uma política de destruição da sua obra política e financeira, fazendo cedências aos meios conservadores, acreditando que, desse modo, conseguiria impedir a concretização do golpe militar que se sabia estar em preparação. Com esta atitude, acabou, no entanto, por abreviar o caminho aos golpistas.
2. UMA ECONOMIA ARCAICA
A esta instabilidade política correspondiam estruturas económicas arcaicas, “cuja solidez só pouco foi abalada e só pouco podia ser abalada” devido aos interesses estabelecidos. Era assim na organização da propriedade, por exemplo; era também assim na economia. Na primeira, os pequenos proprietários desconfiavam do emparcelamento das terras e os latifundiários recusavam qualquer medida que lhes diminuísse a propriedade. Na segunda, “continuava a insistir-se nos produtos tradicionais – os cereais, o vinho, o azeite e a cortiça – com técnicas ultrapassadas e com formas de comercialização já de há muito exploradas”.
Apesar da renovação causada pela guerra, a verdade é que o comércio interno continuou a assentar em formas tradicionais pouco desenvolvidas, como as pequenas lojas, os mercados e as feiras, travando “grandes concentrações de capital e grandes complexos comerciais”. Os pequenos comerciantes e os pequenos industriais, a par com os pequenos proprietários, “dominavam numericamente o espaço económico da época”, constituindo uma força conservadora, flutuante em termos políticos, decidida a apoiar quem lhes garantisse mais lucro, e, claro, uma eventual tranquilidade.
Com a Grande Guerra, e a decisão de Portugal de intervir no teatro das operações bélicas, veio um difícil rescaldo. No entanto, devemos assinalar que a indústria conheceu “um surto marcado, apesar das dificuldades causadas pela falta de transportes, subida no custo das matérias-primas e reivindicações sociais”. Em certa medida, a indústria aproveitou algumas das dificuldades existentes, como a inflação e a instabilidade política, para aumentar os investimentos e melhorar a concorrência com algumas indústrias estrangeiras. Foi assim na indústria conserveira, na têxtil, na química e nos cimentos.
No entanto, a indústria nacional não se desenvolveu através da concentração em grandes unidades fabris, mas através da disseminação de pequenas unidades industriais. Era uma indústria pobre “em capital e em apetrechamento moderno”, resultante de “numerosas mas modestas iniciativas de uma burguesia individualista e resistente a métodos modernos de concentração de capital”, pelo que, a crise económica do pós-guerra, sentida em Portugal até 1925, abalou decisivamente algumas destas indústrias.
Também o comércio interno conheceu uma transformação a partir da Grande Guerra. Só no ano de 1917 foram criadas 282 novas sociedades comerciais, entre as quais cinco companhias de seguros, e, entre 1917-1920, foram constituídos onze bancos, o que evidencia a afluência de capitais. Mas, quando rebentou a crise internacional de 1920-1922, a falência atingiu dezenas de estabelecimentos. Como, em Portugal, a crise económica se alastrou por mais três anos, as falências sucederam-se, deixando muitos na miséria.Por seu lado, o comércio com o estrangeiro, girava, em 1914, graças ao novo tratado comercial luso-britânico, quase totalmente em torno da Inglaterra e das facilidades, nomeadamente de transporte, concedidas pela velha aliada. Como a eclosão da guerra e o alinhamento de Portugal com a Inglaterra obrigaram a um corte de relações comerciais com a Alemanha, a Inglaterra, os Estados Unidos da América e a Espanha apoderaram-se do mercado português. Assim, Portugal “sofreu uma redução drástica no seu comércio externo”, vendo-se obrigado a explorar os parcos recursos internos e a fomentar o intercâmbio com as colónias.
2.1 Uma crise económica catastrófica
No final da guerra, em 1919, em termos de importações, Portugal estava dependente da Inglaterra, dos Estados Unidos da América e da Espanha, donde importava mais de 70 por cento dos produtos, e, para agravar a situação, em termos de exportações, tinha perdido definitivamente o mercado brasileiro que passou a ser controlado pelos Estados Unidos da América. A dependência da Inglaterra era tanto mais séria quanto se sabe que a maior parte dos transportes, tanto de importações como de exportações, mesmo para as colónias e para o Brasil, eram assegurados por este país.
Em 1925, vésperas do golpe militar que derrubou a I República, Portugal agravara a dependência dos mercados europeus, donde provinham cerca de 65 por cento das importações e para onde seguiam cerca de 60 por cento das exportações. A Inglaterra recuperara alguma da ascendência sobre a economia do país. O preço pago pela participação na Grande Guerra fora, efectivamente, demasiado elevado. Mas teria sido fatal para o jovem regime republicano? António Reis considera que a crise económica desencadeada pela participação de Portugal na Grande Guerra “não foi uma crise fatal”, porém, reconhece que essa crise apresenta todos “os ingredientes habitualmente presentes nesse género de crises”, embora também defenda que esses ingredientes se encontram em doses menores do que as encontradas noutros países beligerantes.
Ora, na realidade, entendemos que essas doses, embora menores, foram maiores do que Portugal poderia suportar. Logo durante a guerra, quando se verificou uma expansão do comércio e da indústria, registaram-se também perturbações económicas e sociais graves, provocadas pela escassez de géneros alimentares, uma vez que o país “viveu a crise de escassez da Primeira Guerra Mundial” que resultou da paralisação dos transportes comerciais internacionais e da consequente quebra de fornecimentos, nomeadamente de combustíveis e de matérias-primas; pelo aumento de preços e diminuição dos salários - que diminuiu, progressivamente, o poder de compra das classes médias, do funcionalismo público e das próprias Forças Armadas; pela inflação e pelas tentativas de dirigismo económico do Estado.
Mais, as despesas resultantes da participação na guerra subiram de dia para dia, atingindo o auge nos anos de 1917-1918 e 1918-1919. Nem o aumento das receitas públicas, verificado em 1918-1919, conseguiu fazer face às despesas acrescidas pelo conflito. O descalabro dos orçamentos e das contas públicas foi uma constante, agravada ainda mais nos anos de 1920-1921 e 1922-1923, em que se verificou uma diminuição das receitas do Estado devido, essencialmente, à desvalorização do escudo que diminuiu vinte vezes de valor até 1924.
Por outro lado, a dívida de guerra de Portugal à Inglaterra era exorbitante: aproximadamente 25 milhões de libras (quase o equivalente do PIB). As pretensões de Portugal, bem como da generalidade dos aliados, de ver a dívida paga pela Alemanha, revelaram-se infrutíferas, dado que a Alemanha se mostrava “insolvente ou pagava com irregularidade”, até que, com a crise económica dos finais da década de 20, a Alemanha deu por suspensas em definitivo as reparações a que fora obrigada pelo Tratado de Versalhes.
2.2 Uma economia fechada
Nem o desenvolvimento da economia nacional verificado no final da guerra, designadamente entre 1919-1920, foi capaz de resolver a situação económica do país. O comércio do vinho, da cortiça e das conservas de sardinha expandiu-se, as importações aumentaram, constituíram-se onze novos bancos e numerosas e diversificadas sociedades comerciais, porém, o boom acabou e uma nova crise económica internacional (a de 1920-1922) abateu-se sobre Portugal, teimando em persistir até 1925. Esta crise, caracterizada, essencialmente, por “uma inflação monetária incontrolável e uma especulação desenfreada” acabou por determinar a falência de catorze bancos e diversas casas bancárias.
A balança comercial, embora com altos e baixos, evidenciou um constante deficit, com as importações a excederem “geralmente as exportações em mais do dobro”. A inflação continuou a agravar-se em consequência dos deficits públicos e do seu financiamento com recurso a empréstimos do Banco de Portugal, que obrigaram a um sempre penalizante aumento de emissão monetária. E as transferências de capitais para fora do país acentuaram-se, calculando-se, em meados da década de vinte, em 70 milhões de libras. Esta fuga de capitais depauperou o Estado que, no final da I República, tinha uma das mais baixas reservas de ouro da Europa.
Não admira, assim, que, no final da Grande Guerra, do ponto de vista político, a situação interna e externa de Portugal tenha sido observada pelas principais potências estrangeiras como uma situação de decadência ou de decomposição – recordemos os 14 ministérios que governaram Portugal entre Maio de 1919 e Janeiro de 1922; lembremos que a esta instabilidade governativa se associou a indisciplina dentro dos partidos republicados que viviam cisões constantes, tornando imprevisível a sustentação parlamentar dos governos; não esqueçamos que, do lado espanhol, continuava a sonhar-se com o dia em que Portugal perderia a sua categoria de Estado soberano e a Espanha se apresentaria como a legítima herdeira do espaço geográfico português (era um sonho que ganhara nova força no período sidonista, porquanto Sidónio Pais contemplara “seriamente o projecto de uma aliança com o país vizinho”) - e que, do ponto de vista financeiro, a situação de Portugal tenha sido qualificada como catastrófica.
Evidentemente que a República herdou um país de cofres vazios e, devido à instabilidade política e governativa, não teve tempo para os voltar a encher. Contudo, a Grande Guerra tornou inevitável que a situação do país se agravasse. Só a partir de 1924, Portugal conseguiu começar a recuperar o nível de produção anterior à guerra, muito embora essa recuperação tenha ficado a dever-se aos efeitos da reforma fiscal de 1922 e do progressivo “controlo das contas públicas” realizado pelo então ministro das Finanças Álvaro de Castro.
Neste período, uma vez que a participação na guerra confirmou a posse do império colonial, Portugal começou a desenhar um novo modelo de espaço económico nacional à escala do império, fechando a economia do país sobre si mesma. Esta lógica de construção de um novo espaço económico nacional à escala do império, associada à retracção do comércio internacional, contribuiu, de forma decisiva, para a ideia da necessidade de um governo forte, que começou, por esta altura, a circular entre a opinião pública e que apresentou o exército como a solução para a crise que aprisionara Portugal.
3. A CRISE SOCIAL E DE VALORES Se, na realidade, as mutações políticas e económicas resultantes da conjuntura da Grande Guerra explicam a queda da I República, a verdade é que esses factores foram ainda auxiliados pela agitação social que afectou a vida da República desde o início mas que se agudizou durante e após a guerra. A este nível, devemos analisar duas ordens de razões: o esvaziamento dos valores e a questão operária.
Em relação ao esvaziamento dos valores, podemos considerar a insensibilidade à violência, a proliferação de ódios e a crise dos valores morais tradicionais, todos fomentados pela Grande Guerra. Basta recordarmos os acontecimentos da «noite sangrenta» (19 de Outubro de 1921), ocorridos no rescaldo do vitorioso golpe militar radical contra o governo do Partido Liberal de António Granjo, para constatarmos que a violência entrara na ordem do dia, atingindo um ponto até então inimaginável.
O facto de se aceitar que a conspiração da «noite sangrenta» deverá ter tido várias cabeças e não deve ter resultado de um plano geral mas de uma série de ajustes de contas, evidencia que a instabilidade política e a crise económica provocadas pelos quatro anos de guerra, e todo o sangue derramado pelos milhares de mortos e outros tantos milhares de feridos, tinham criado uma atmosfera de impunidade e uma enorme insensibilidade à violência. Conspirava-se na maior promiscuidade, pelo que já ninguém estranhava. Contudo, a morte de conhecidos fundadores da República (António Granjo, José Carlos da Maia e Machado Santos), bem como de cidadãos quase anónimos (como o motorista Gentil e o coronel Botelho de Vasconcelos) na «noite sangrenta» gerou uma “vaga de repulsa colectiva” no país.
Ninguém conseguia entender a crueldade destas mortes, pelo que imediatamente surgiu um clima de comoção nacional que obrigou as elites republicanas e a opinião pública a tomarem consciência da necessidade de criação de condições de estabilidade governativa. Por isso, foram convocadas eleições legislativas antecipadas (em Janeiro de 1922), que conferiram a vitória aos democráticos, então chefiados por António Maria da Silva.
Esta conjuntura política, económica e social, viabilizou o início do saneamento das finanças do Estado e do controlo da inflação, deixando pairar sobre a República, ainda que por pouco tempo, uma última réstia de esperança. É por isso que entendemos que os acontecimentos da «noite sangrenta», que, efectivamente, foram aproveitados para criar o clima favorável à queda do regime republicano, num primeiro momento, funcionaram como um aviso às classes dirigentes do país. António Reis partilha deste nosso ponto de vista, ao defender que a «noite sangrenta» funcionou como “um sinal de alarme”, criando “as condições para que os dirigentes republicanos arrepiem caminho e enveredem por um período de relativa estabilidade governativa”, que estará na base da sobrevivência da República durante mais cinco anos.
3.1 O descontentamento da classe operária
Os trágicos acontecimentos da «noite sangrenta», na medida em que constituíram uma espécie de aviso à ‘navegação’, poderão também ter contribuído para uma certa desmotivação da classe operária para o protesto social. Isto porque, até então, o descontentamento da classe operária era o maior possível. Os sucessivos governos da República não tinham feito uma política económica e social capaz de dar provimento às exigências da classe operária e de responder às pressões da oligarquia financeira, pelo que a ameaça da classe operária se intensificara entre 1919 e 1921.
Para tranquilizar “os meios burgueses face ao crescendo da agitação social operária, os governos republicanos envolvem-se numa quase guerra permanente contra o movimento operário que acabaria por os cortar completamente deste seu fundamental aliado do 5 de Outubro”. Embora o operariado representasse uma reduzida percentagem (5%) da população do país, e se encontrasse partidariamente dividido, a verdade é que se agrupava em associações de classe, coordenadas, até 1919, pela União Operária Nacional, e, depois, pela Confederação Geral do Trabalho, ambas de orientação anarco--sindicalista de influência italiana e espanhola, empenhadas em acabar com o capitalismo, fosse monárquico ou republicano. E em Lisboa, os operários, que tinham ajudado a constituir, até 1910, a base social de apoio do Partido Republicano Português, representavam cerca de 40% da população. Não eram, de todo, inestimáveis.
A República prometera-lhes, nomeadamente, uma jornada de trabalho de oito horas, o direito à greve, o direito de voto, e não lhes dera rigorosamente nada. Mais: quando o operariado se mobilizou para protestar contra os governos da República, foi sempre violentamente reprimido. Recordemos, a título de exemplo, a repressão a tiros de espingarda de que foram alvo os grevistas das conserveiras de Setúbal logo em 1911. Ou, em plena guerra, na Primavera/Verão de 1917, o combate que o governo deu, “com excepcional violência” à “explosão grevista e popular de protesto contra os terríveis efeitos da participação de Portugal no conflito”.
Destes efeitos - carestia de vida, escassez de géneros alimentares, epidemias de gripe e de tifo, milhares de mortos nas trincheiras, açambarcamento de bens essenciais – resultara, entre Maio e Setembro de 1917, como acentua Fernando Rosas, um “convulsivo processo de revolta social e de greves”, a que o governo respondera com prisões massivas de grevistas e encerramentos de sindicatos. Aliás, foi neste contexto que o sindicalismo revolucionário apoiou o dezembrismo. Embora tenha sido sol de pouca dura. Os protestos contra a guerra e as suas dramáticas consequências no dia-a- dia dos mais pobres, para quem “a única coisa que a intervenção na guerra significava era […] um calvário de fome, doença e miséria”, regressaram logo em Março de 1918, agudizaram-se com a tentativa de greve geral de Novembro do mesmo ano, e nunca mais pararam.
Contudo, neste quadro, o operariado ainda se reconciliou – por pouco tempo – com o republicanismo e exigiu na rua a reposição da ordem de acordo com a Constituição aprovada em 1911. Esse apoio do operariado, não impediu, no entanto, que a repressão regressasse durante a ofensiva operária de 1919-1921, que paralisou, durante longos períodos de tempo, alguns dos sectores que ainda permitiam andar a economia do país. O operariado português voltar-se-ia, de novo, para o discurso anarco-sindicalista, que identificava os partidos como agrupamentos da burguesia endinheirada e, deste modo, tornar-se-ia uma ameaça respeitável ao poder político.
Como escreve Oliveira Marques, “atentados à bomba, lutas individuais e assassinatos, muitas vezes com cheiro político, traduziram […] a agitação social desde 1919”. Apesar da “posição oficial de neutralidade dos trabalhadores nas querelas políticas, consideradas assunto «burguês», foram sem conta os operários e os empregados subalternos que participaram nas muitas revoluções e conspirações”.
3.2 A impassibilidade do operariado
Após a «noite sangrenta», a classe dirigente percebeu que era urgente acalmar a contestação nas ruas. Nisto, teve alguma sorte, pois as notícias que iam chegando das reviravoltas na Ucrânia, das concepções leninistas “acerca […] da «ditadura do proletariado»”, que chocavam com o ideário anarquista, bem como “o surgimento […] do partido comunista […] e a cisão que ele operou no movimento operário”, refrearam o movimento sindical.
Desta divisão e de uma certa fraqueza estratégica resultou “o progressivo esgotamento e perda de eficácia das lutas operárias a partir de 1922-1923”, seguindo-se, assim, “um tempo em que as mobilizações sindicais decresceram”. O certo é que esta desmobilização do movimento de contestação social permitiu ao novo governo a implementação de medidas que viabilizaram um certo crescimento económico do país. Este crescimento económico não foi, no entanto, suficiente, para a sobrevivência da República. Embora tenha diminuído a contestação operária, a verdade é que a República teve que defrontar-se com o aumento do terrorismo. A violência tornou-se uma constante nas cidades, devido, nomeadamente, à acção de organizações clandestinas como a «legião vermelha». Ainda que não existissem “formações para-militares ou milícias de tipo fascista em Portugal, nem mesmo associações de ex-combatentes que povoaram a Europa após a Primeira Guerra Mundial, a presença de sectores armados de partidos ou de associações secretas a eles associados cobria praticamente todo o espectro político”.
A recta final da República, nomeadamente o período entre o 18 de Abril de 1925 (movimento militar chefiado pelo general Sinel de Cordes, comandante Filomeno da Câmara e coronel Raul Esteves) e o 28 de Maio de 1926, é ilustrativa do clima de “quase inevitabilidade de uma nova grande mudança política, com inacreditável passividade do campo republicano, expectativa do movimento operário, movimentações e declarações cada vez mais ousadas de natureza antidemocrática.” O operariado, que “em momentos cruciais de ofensiva das direitas” ainda acudiu à República (contra as tentativas de restauração monárquica em 1919 e contra os golpes político-militares das «forças» em 1924 e 1925), assistiu “impassível” ao golpe final na I República.
4. A OPOSIÇÃO DA IGREJA CATÓLICA
A conflituosidade entre a República e a Igreja foi uma constante, por isso a questão religiosa é também relevante no contexto da agonia da I República. Aquando da instauração do regime republicano, a Igreja católica era a grande potência religiosa em Portugal. Havia cerca de seis mil padres, o que correspondia a um padre por cada mil habitantes. O norte e os Açores eram as regiões onde a influência do clero era maior. “A correlação entre as zonas de menor influência clerical e de maior influência republicana era clara”. Não admira, assim, que os republicanos quisessem debelar a influência da Igreja.
Por isso, logo no início, a República assustou alguns padres, cientes de que um dos objectivos republicanos era a separação da Igreja do Estado. Cerca de meio ano depois da instauração do regime republicano já a ‘lua-de-mel’ terminara. Os rumores sobre conspirações aumentavam; os padres manifestavam a sua hostilidade nos púlpitos; e os bispos protestavam contra o ideário republicano. A 20 de Abril (1911), Afonso Costa, através do Ministério da Justiça, respondeu aos descontentamentos da Igreja católica com a Lei da Separação do Estado das Igrejas.
Com esta lei, a República assumiu-se como radical, hostilizou o conservadorismo católico, cortando qualquer possibilidade de aproximação às forças conservadoras. A esquerda monárquica, que planeara adesivar-se na qualidade de direita republicana, afastou-se da República. A Igreja apelou aos sentimentos católicos da maioria da população portuguesa, incitando-a contra a República jacobina e anticlerical. Como tinha ao seu serviço uma imprensa considerável (jornais e revistas), desencadeou um combate sem tréguas ao regime republicano. A Lei da Separação entrou em vigor a 1 de Julho (1911) e com ela a Igreja católica não ficou apenas empobrecida e equiparada a todos os demais credos existentes no país. Ficou “reduzida a uma situação de subserviência frente ao povo católico como jamais tivera no passado, pelo menos no passado português”.
Por outro lado, a lei transformou a propriedade eclesiástica em propriedade nacional ao serviço da Igreja, o que laicizou o Estado e abateu o poderio eclesiástico. Apesar de uma forte resistência da hierarquia eclesiástica, até 1917 a lei foi cumprida, embora, pontualmente se tenha verificado a suspensão de alguns artigos. A liberdade de cultos acabou por se traduzir numa intolerância do Estado sobre o catolicismo, como o país ainda não conhecera e por uma ‘guerra religiosa’ instalada no interior da sociedade.
Este anticlericalismo, como acentua Fernando Rosas, “transcendeu em muito a importante tarefa de modernização cívica que foi a laicização do Estado (princípio da separação, divórcio, registo civil, direitos das mulheres, ensino laico…)” e, além do mais, “instalou uma espécie de neo-regalismo republicano, dando ao Governo o poder de nomear, demitir e castigar os bispos, de censurar as suas homilias, de fiscalizar e policiar as manifestações do culto, chegando a nacionalizar as igrejas e as alfaias”.
De um modo completamente suicidário para a República, o regime respondeu com severidade “aos protestos, às desobediências, às críticas, às conspirações, prendendo, deportando, silenciando jornais, humilhando os dignitários da Igreja católica”. É por demais evidente que a laicização do Estado não exigia que se hostilizassem os sentimentos e as crenças religiosas da grande maioria da população portuguesa, sobretudo a população rural. O anticlericalismo afonsista não percebeu que, deste modo, atingia uma parte significativa da sua base social de apoio: a plebe urbana que escutara e seguira a palavra dos líderes republicanos como se esta fosse palavra de evangelho.
4.1 O ‘magro’ impacto do reformismo sidonista
Como assinala Vítor Neto, a República, apesar de ter estabelecido a liberdade de cultos, não usou de maior tolerância. De acordo com este especialista, o período republicano caracterizou-se por uma “intolerância extrema em virtude do radicalismo da política religiosa levada a cabo por Afonso Costa e pelos seus colegas republicanos”, a qual se pautou por uma conflituosidade religiosa que atravessou toda a sociedade portuguesa e todo o espaço geográfico do país.
Atacada por todos os lados, a Lei da Separação tornou-se um símbolo do jacobinismo da República dos democráticos, antagonizou posições e bipolarizou a sociedade entre conservadores e radicais, esvaziando o centro político – o que só seria atenuado pelo reformismo do governo de Sidónio Pais (1917-1918) - pelo Decreto n.º 3056 de Março de 1918. Mas, mesmo esta revisão sidonista não correspondeu às aspirações clericais. Apesar de ter restituído ao clero parte da sua intervenção nos assuntos do culto, não lhe devolveu a influência política material perdida em 1911. A Igreja não insistiu na recuperação do prestígio perdido, antes decidiu investir noutros campos e aguardar “por melhores dias para pôr fim à odiada lei”.
Como vinha fazendo desde o início da República, e acentuadamente durante a guerra, sobretudo até ao sidonismo, a Igreja “fomentou e enquadrou grande parte […] das conspirações, revoltas, motins e outras formas de luta armada contra a República”. Entre a República e a Igreja, “incapaz de se adaptar”, o combate foi, portanto, “inevitável e permanente”.
4.2 A República à defesa e a Igreja ao ataque
Com a Grande Guerra e a participação de Portugal assistiu-se a um renascimento da influência religiosa, pelo que a ofensiva contra a Igreja Católica acalmou. Porém, era tarde demais, a Igreja percebera que chegara a sua hora. A política anticlerical provocara a alienação do mundo rural e das mentalidades mais conservadoras em relação à República.
O anticlericalismo republicano não só não conseguira diminuir o poder político e simbólico dos católicos, como ainda empurrara para as fileiras conservadoras anti-republicanas a grande maioria das populações rurais, sobretudo do norte e centro de Portugal.
No mesmo contexto, a direita antiliberal, arvorada em defensora da religião e da própria Igreja Católica, ganhara expressão e reforçara “o cerco contra a Lisboa «ateia», grevista e republicana”. A República, “continuamente enfraquecida, passou à defesa e a Igreja ao ataque. Débil, debatendo-se com extraordinárias dificuldades, a República foi, um a um, entregando os trunfos”. A Igreja voltou a ter uma liberdade de movimentos quase total, sem controlo do Estado.
Após o restabelecimento das relações diplomáticas com a Santa Sé (Julho de 1918) e a imposição, pelo Presidente da República António José de Almeida, do barrete cardinalício ao núncio apostólico Achille Locatelli, como apenas faziam os reis, consumou-se a nova aproximação entre o Estado e a Igreja católica.
Entretanto, a Igreja católica reorganizara-se, criara novos organismos, novas devoções, novas fontes de receita (desenvolvendo relações com representantes da alta finança), reforçara a sua imprensa e aproximara-se das Forças Armadas. A partir daí, com a ajuda de uma imprensa bem orientada e preparada para combater com inteligência, o papel da Igreja católica foi trabalhar “até conseguir a vitória final em Maio de 1926”.
De acordo com Vítor Neto, é nas consequências do anticlericalismo para a I República que se enraíza, até hoje, a prudência com que os regimes políticos portugueses lidam com a Igreja católica.
5. A IRA DOS MILITARES
Por último, não podemos deixar de equacionar o contributo dos militares para a queda da I República. De 1914 a 1918, uma parte significativa do exército esteve na guerra nas colónias em África e na frente europeia em França. Algumas expedições fizeram a defesa das colónias de Angola e Moçambique nos quatro anos de guerra e um corpo especial (CEP - Corpo Expedicionário Português) fez a guerra na Flandres nos anos de 1917-1918. No total, eram cerca de 100 mil homens, dos quais dez mil perderam a vida. Todavia, os restantes regressaram a casa, alguns feridos, mas, a maioria retomou as suas ocupações anteriores à guerra, não suscitando problemas dignos de registo e reintegrando-se na ordem social existente no pós-guerra em Portugal.
Os oficiais, no entanto, especialmente os generais, os coronéis, os tenentes-coronéis e os majores, regressaram com folhas de serviço prestigiadas, medalhas, habituados a comandar, e depararam-se com um país em que o poder era dos civis, devidamente alavancado pela classe política. Ainda assim, obrigaram o Estado a incorporar, nas Forças Armadas, cerca de 2000 oficiais milicianos, aumentando, entre 1915 e 1919, de 2600 para 4600 o número total de oficiais. Este problema era tanto mais gravoso quanto, entre 1919 e 1921, devido às intensas e prolongadas greves operárias, bem como à desconfiança dos governos nas Forças Armadas, o Estado reforçara o corpo da GNR (5 mil em 1911; 11 mil em 1922). Como a GNR era considerada “uma defensora urbana do Estado” contra o operariado e contra o exército, este reforço representou “mais um elemento da burocracia associada ao controlo dos democráticos do governo”, e, por isso mesmo, suscitou mais uma tensão corporativa.
O elevado número de militares resultante da intervenção na guerra e da intensificação da crise social, aliado à inflação, provocou uma redução dos seus salários (35,8% em 1918, 22,6% em 1920, 22% em 1921 do que eram antes da Grande Guerra), o que foi responsável pelo aumento das tensões corporativas com os governos republicanos. Nem os subsídios e os privilégios que lhes foram concedidos travaram o seu descontentamento.
5.1 O antagonismo entre a «força armada» e o poder político
“Sem guerras e com as colónias pacificadas e uma estrutura de base incapaz de os absorver”, as elites dirigentes discutiram qual deveria ser o papel dos oficiais na vida civil, porquanto sabiam que os militares – “muitos deles orgulhosos das suas medalhas – constituíam um excedente perigoso, vocacionado para a conquista do poder”. A dor de cabeça dos governantes aumentou devido ao facto da legislação em vigor permitir o seu recrutamento, a sua manutenção em quadros próprios e mesmo a sua integração na carreira militar, e os oficiais de carreira e alguns sargentos terem subido o tom dos protestos por se sentiram preteridos na mudança de patente.
A indisciplina nos quartéis, corrente no período republicano, foi outros dos problemas suscitados pelos militares. As sucessivas insurreições e revoluções, com as consequentes prisões, destituições e descriminações de oficiais e sargentos ainda contribuíram mais para a confusão vivida no sector militar. Aliás, a tomada do poder por Sidónio Pais assentou “num acto generalizado de indisciplina: recusa à mobilização para a guerra”.
No fim da guerra, a instituição militar enfrentou, como assinala José Medeiros Ferreira, três problemas: “as despesas orçamentais, […] o hipertrofiamento dos quadros de oficiais e […] as novas orientações para a política militar em Portugal”. Ainda viram franqueada, um tanto para acalmar as hostilidades, a sua entrada nos órgãos directivos dos partidos, mas, mesmo assim, nunca se reviram na política republicana. Nem a recuperação do seu estatuto social e do seu poder de compra, que começou nos anos de 1920-1921 e, embora não tenha sido constante, prosseguiu até 1930, conseguiram provocar uma inversão da marcha militar.
O golpe de Abril de 1925 evidenciou que os militares não tinham desistido do seu objectivo. Na perspectiva de José Medeiros Ferreira, aqueles problemas implicaram um recolhimento dos militares até 1923 - período em que a República se apoiou na GNR -, mas, a partir daí, tudo pareceu “resumir-se ao antagonismo entre a «força armada» […] e o poder político do Partido Democrático”. Bastou uma diminuição temporária do seu efectivo poder de compra para acertarem o passo na direcção mais temida pelos republicanos – o golpe.
A partir das conspirações de 1925, a pressão dos militares acelerou-se tão claramente que estes não tiveram pejo em agir em nome das próprias Forças Armadas. Só a resistência de algumas unidades militares e da GNR fez abortar a insurreição militar. Esta resistência não impediu que, alguns meses mais tarde, um tribunal militar reintegrasse os insurrectos, e que crescesse o “apelo a um interregno militar na política parlamentar”. Na origem deste apelo estaria, entre outros aspectos, a situação dos militares que não melhorara com a República, agravara-se durante a guerra e jamais regressara ao nível anterior à intervenção de Portugal no conflito mundial.
5.2 A contagem decrescente para o 28 de Maio
Neste ambiente, o republicanismo, apesar de ter “propostas coerentes para responder à crise de fundo que abalava a República liberal”, não teve “força política e militar para as aplicar”. Em nome desta crise que “varria o país e da urgência de remédios excepcionais para a «salvação nacional»”, as elites liberais nacionais renderam-se política e intelectualmente ao nacionalismo autoritário, aceitando uma alternativa militar ao poder estabelecido.
Entretanto, os militares, dado que tinham conseguido repor alguma disciplina nos quartéis e recuperar algum do seu prestígio (nomeadamente através da inauguração de monumentos à participação de Portugal na Grande Guerra), perceberam que começavam a estar reunidas as condições para se revoltarem, pondo fim à I República. A revolta de 18 de Abril de 1925 proporcionou alguma mobilização dos militares e da opinião pública, funcionando como ensaio geral do 28 de Maio de 1926.
Convém, contudo, não esquecer que os militares não incorporavam, como o discurso histórico-ideológico do Estado Novo pretendeu fazer valer, uma instituição “supraclassista e suprapartidária, referência última da legitimidade do Estado, depositário […] das virtudes pátrias, bastião incorruptível do vigor derradeiro da nação enferma”. Eram, antes, uma instituição dividida política e ideologicamente “em várias conspirações e facções que guerreiam, concorrem e se vigiam”.
Na verdade, em 1926, as Forças Armadas encontravam-se tão fraccionadas política e ideologicamente que cada “facção política tinha a sua espada, a sua tropa de confiança”, como conclui Fernando Rosas, para quem, no 28 de Maio “não há uma conspiração militar una, com um comando e um plano centralizado, com uma chefia clara. A conspiração desdobra-se por distintas facções político–militares com os seus chefes próprios, ligados aos apoios político-partidários de que dispõem e às suas respectivas e distintas estratégias, vigiando-se mutuamente e tentando a todo o custo, cada uma delas, ganhar a iniciativa dos acontecimentos”.
Em última análise, os militares foram, como acentua João Medina, os protagonistas de “uma curta comédia de enganos, trepidante carrossel de atarantados […] sequiosos de mando” que, no entanto, levaram a República à cova, enquanto os operários assistiam indiferentes ou resignados – afinal tinham velhas contas a ajustar com os dirigentes republicanos, sobretudo com Afonso Costa, a quem tinham atribuído a alcunha de «racha – sindicalistas».
CONCLUSÃO Se “a História é o romance verdadeiro”, como defende Paul Veyne em Como se escreve a História, neste ‘romance’ sobre a falência da I República sobressai uma ideia muito clara: a participação de Portugal na Primeira Guerra Mundial foi o grande motor de arranque para o precipício que foi o golpe militar de 28 de Maio de 1926.
Não há dúvida de que, depois da implantação da República, é a Grande Guerra que “traça a marca mais profunda na sociedade portuguesa” na segunda década do século XX. Assim como também não restam dúvidas de que, para além da Lei da Separação do Estado das Igrejas, é a guerra que mais afasta a população da República.
Pode não ser possível estabelecer uma relação de causa-efeito entre a nossa intervenção na Grande Guerra e a falência da República – porque, como vimos, há outros factores que também contribuíram para a sua queda - , e pode mesmo concluir-se que a nossa não participação na guerra não nos teria poupado enquanto país nem teria salvaguardado o regime republicano, porque a neutralidade não poupou nenhum país. Todavia, tem de se concluir claramente que a decisão intervencionista e a nossa participação efectiva no primeiro conflito mundial provocou uma catástrofe nacional que foi decisiva para a falência da I República.
Como factor de instabilidade em todos os países envolvidos, a guerra foi responsável por crises monetárias, fomes, epidemias, greves, motins, golpes de Estado e revoluções. Em Portugal, a guerra provocou uma carência generalizada de géneros essenciais, aumento de preços, desvalorização da moeda, racionamentos, aumento da pequena criminalidade – como os assaltos a depósitos de bens de consumo -, confrontos entre a população e as forças policiais, até uma epidemia de gripe pneumónica, empurrando a opinião pública e a população em geral contra a República.
A guerra aumentou os males de que padecia a República. É verdade que, com a participação na Grande Guerra, a República pretendia “consolidar-se no quadro das instituições legais europeias e mundiais”, porém, o confronto político-ideológico entre intervencionistas e anti-intervencionistas abriu várias frentes de confrontação política e social, propiciando o desenvolvimento de um sentimento de tipo antiliberal e anti-republicano.
O sidonismo, “expressão do profundo descontentamento popular com os efeitos da política de intervenção na guerra” é disso exemplo. Tratou-se de uma “primeira tentativa de superar o republicanismo através de um novo tipo de ditadura antiliberal”, que, só não vingou – como sustenta Fernando Rosas – porque “as direitas portuguesas não tinham ainda, não podiam ter, a experiência do que haveria de ser o seu processo de concertação e unificação política e ideológica não só para tomar o poder […], como, sobretudo, para nele se manter e iniciar o processo de transição para um regime autoritário e antiliberal de novo tipo”.
A beligerância de Portugal acabou por transformar-se numa espécie de catalisador de todos os ódios à República e ao sistema liberal, criando as condições propícias à radicalização das correntes antidemocráticas e autoritárias e ao reforço do pensamento antiliberal. Mesmo depois de cessar o conflito, e após a assinatura da paz, Portugal não conseguiu resolver a crise que se instalara no país. Claro que as decisões tomadas em sede da Conferência da Paz, em Paris, entre Janeiro e Junho de 1919, em nada ajudaram a jovem República portuguesa.
O intervencionismo português, que tinha o objectivo claro de reforçar o prestígio internacional da República e de fazer Portugal alcançar “um lugar entre as nações”, acabou por revelar-se “uma típica e suicidária manifestação do voluntarismo republicanista: o desejo de regenerar Portugal a golpes de audácia e de diplomacia – de ideologia -, mas à custa do sacrifício directo e indirecto da imensa maioria para quem a guerra não passava de um morticínio absurdo”.
É por isso que a política guerrista não agradou a ninguém: a unidade nacional não foi conseguida; a elite democrática não conseguiu sobreviver no poder; a instabilidade política agravou-se; a crise económica intensificou-se de forma dramática; a agitação social agudizou-se enormemente; os militares mal equipados e empobrecidos pela Grande Guerra fragmentaram-se; a Igreja, apesar da lei de Afonso Costa, continuou a ser o ‘ópio’ do povo.
Em síntese, podemos concluir o seguinte:
- O espectro político português do pós-guerra caracterizou-se por um aumento do ritmo de queda dos governos. Os governos de coligação, conservadores ou de maioria democrática, foram instáveis, atingindo a mais baixa duração média (91 dias) quando comparados com os governos de um único partido antes da guerra (156 dias). A instabilidade política do pós-guerra foi, no entanto, diferente da que precedeu o conflito mundial. Enquanto no período anterior à guerra, a instabilidade foi criada pelo problema do acesso político, no pós-guerra são as motivações de política económica que estão na origem da instabilidade governativa. O breve consolado sidonista e a fragmentação do sistema partidário são outras das características do panorama político nacional do pós-guerra.
- Em termos económicos, a situação do país agravou-se no pós-guerra. Embora Portugal não tenha sofrido danos graves na sua estrutura produtiva comparáveis aos prejuízos causados pela guerra nos territórios beligerantes, na verdade, viveu a crise da escassez da Grande Guerra, resultante da paralisação dos transportes comerciais e da quebra de abastecimentos de matérias-primas e de combustíveis, e só conseguiu recuperar os níveis de produção anteriores à guerra em 1924. Por outro lado, a confirmação da posse do território colonial pelo Tratado de Versalhes, levou à organização de um novo espaço económico à escala do império e ao consequente fecho da economia nacional sobre si mesma.
- Do ponto de vista social, a participação na guerra também marcou decisivamente o destino de Portugal. A partir do momento da decisão de conduzir Portugal à guerra, os intervencionistas exacerbaram os conflitos sociais internos, afastaram-se, cada vez mais, da sua base social, e confrontaram-se com uma massa da população que exigiu nas ruas o pão que a guerra lhes tirara. Nem o fim do conflito acalmou o descontentamento social. Os anos de 1919-1920 foram terríveis. A contestação social só abrandou depois de 1921 devido à obtenção de melhorias significativas das condições de trabalho, bem como em virtude da comoção nacional provocada pelos assassinatos da «noite sangrenta», a qual funcionou como um aviso para as classes dirigentes.
- A nova conjuntura internacional do pós-guerra, que favoreceu o surgimento de soluções autoritárias, veio também acompanhada de um ressurgimento do sentimento religioso. O auxílio que os católicos prestaram aos militares que tombaram nos campos de batalha, inspirou os sentimentos religiosos da população. Estes sentimentos significaram o princípio do fim da postura anticlerical da República dos democráticos. A Lei da Separação do Estado das Igrejas, que esteve na base da oposição permanente entre a Igreja católica e a República, foi ferida pelo reformismo sidonista e golpeada de morte no pós-guerra, quando se reataram as relações com a Santa Sé e quando o Presidente da República António José de Almeida impôs o barrete cardinalício ao núncio apostólico como só faziam os reis. Mesmo assim, a Igreja católica continuou conspirativa, tão anti-republicana como a República democrática era anticlerical.
- Sobre os militares, a guerra teve também um efeito destabilizador. Desde o início, a estratégia intervencionista provocou uma divisão profunda nas Forças Armadas. Por sua vez, esta divisão agravou a desconfiança do governo nas Forças Armadas. Por isso, o governo criou o CEP, uma força especial constituída por oficiais leais à República, que levou alguns militares a manifestarem-se contra a guerra. De resto, estes militares acabam por viabilizar as ditaduras de Pimenta de Castro (1915) e de Sidónio Pais (1917-1918) e nunca mais aceitaram a política republicana.
Da intervenção na guerra e do fim do sidonismo emergiu um exército dividido e politizado, duplicado em efectivos e aumentado em dirigentes com prestígio alcançado nos campos de batalha. São estes os que não aceitaram, no regresso à pátria, a diminuição do seu nível de vida, devido ao abaixamento dos salários. São os que se envolveram em tensões corporativas sucessivas, primeiro, revoltas e golpes, depois; até ao golpe final de 28 de Maio de 1926 – este organizado pelas diversas facções existentes no seu interior, nomeadamente republicanos conservadores, católicos e integralistas.
Em suma, os dramáticos efeitos políticos, económicos, sociais, religiosos e militares da participação de Portugal na Grande Guerra “agudizaram todas as dificuldades e contradições do regime, precipitando-o numa crise, à qual, em última análise, ele acabaria por não sobreviver”. Foi, neste contexto, que foi possível o golpe militar de 28 de Maio de 1926, perante o qual, tendo em conta a situação descrita anteriormente, “o povo esperava, a Igreja suspirava, a banca respirava e os talassas conspiravam”.
FONTES E BIBLIOGRAFIA
Fontes arquivísticas
Arquivo Histórico – Diplomático do Ministério dos Negócios Estrangeiros, Lisboa
Primeira Guerra Mundial/Conferência da Paz:
Negociações sobre a entrada de Portugal na Guerra. Envio de tropas para França. 1914/1919 – 3.º piso, armário 7, maço 22.
Guerra na Europa. 1916/1917 – 3.º piso, armário 7, maço 20.
A Guerra e as colónias portuguesas, 3.º piso, armário 7, maços 15 e 16.
Angola. Moçambique. Prisioneiros – 3.º piso, armário7, paço 14.
Relatório sobre as relações de Portugal com a Inglaterra durante a Guerra – 3.º piso, armário 6, maço 133.
Proposta de Afonso Costa ao governo inglês para empréstimo a Portugal. 1917/1918 – 3.º piso, armário 8, maço 6.
Dívidas de Guerra de Portugal a Inglaterra. 1914/1926 – 3.º piso, armário 11, maço 330.
Política Internacional Pós-Guerra – 3.º piso, armário 10, maço 25.
Fontes Impressas
Documentos diplomáticos
Documentos apresentados ao Congresso da República em 1920 pelo ministro dos Negócios Estrangeiros, Portugal no conflito europeu, Lisboa, 1920.
Livro Branco Portugal na 1.ª Guerra Mundial (1914 – 1918), Tomos I e II, Ministério dos Negócios Estrangeiros, Lisboa, 1995.
Obras Gerais
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