segunda-feira, fevereiro 04, 2008

REGICÍDIO: UM DIA DEPOIS

Por Noémia Malva Novais

INTRODUÇÃO

A imagem que estão a ver mostra algumas das manchetes dos jornais diários portugueses do dia 2 de Fevereiro de 1908 – um dia depois do regicídio. Foi impressa há apenas quatro dias no mesmo prelo em que foram feitas as provas de alguns dos mais influentes jornais diários do Norte de Portugal em 1908. Eu mesma a imprimi no prelo de provas que o Museu da Imprensa do Porto tem à disposição de qualquer um de nós que queira experimentar a emoção de um tipógrafo do tempo do duplo assassinato do Rei D. Carlos e do Príncipe Real D. Luís Filipe.
À nossa disposição, o Museu da Imprensa tem também, até finais de Maio próximo, uma exposição intitulada “As manchetes do regicídio” que evidencia a tese que hoje aqui vos trago – a de que a Imprensa, apenas a preto e branco, tem, aquando do regicídio, uma força avassaladora. Com efeito, há exactamente 100 anos - apenas com a diferença de hoje ser sábado e de há um século o dia 2 de Fevereiro ter sido num domingo -, os jornais abrem as suas primeiras páginas com o regicídio, abordando-o como um acontecimento completamente inesperado.
1. REGICIDIO NOTICIADO POR NOTA OFICIOSA

O regicídio é manchete em todos os jornais existentes ao tempo. Alguns jornais decidem mesmo imprimir uma 2.ª edição. Convém recordar que, no início do século XX, os meios técnicos eram escassos e os jornais eram compostos manualmente, o que obrigava os tipógrafos a trabalharem, em média, cerca de 10 horas por dia, para garantirem a saída dos jornais que, então, apresentavam entre duas, quatro e seis páginas. Portanto, o recurso à 2.ª edição foi a forma encontrada por alguns jornais para conseguirem noticiar o duplo assassinato real que, como é sabido, aconteceu ao final da tarde de sábado, dia 1 de Fevereiro, no Terreiro do Paço, em Lisboa.
À hora do regicídio, estariam já prontos alguns jornais. É o caso do jornal O Futuro, o diário de Angola dirigido por Viana Rodrigues, que apenas se publica às terças, quartas e quintas-feiras, e que decide fazer uma 2.ª edição, enchendo a sua primeira página com a notícia do atentado. O título “Horrível tragédia” atravessa a página de uma margem à outra e é complementado por dois subtítulos: “El Rei e o Príncipe Real assassinados” e “O Infante D. Manuel proclamado Rei de Portugal”. Com apenas três frases informativas, o jornal O Futuro utiliza toda a força da Imprensa, estando ao nível das práticas defendidas pelas mais actuais teorias da informação.
O mesmo acontece com o Jornal de Notícias, ex-regenerador, agora independente, e, com certeza, um dos mais importantes jornais diários do Porto e do país, ao tempo dirigido por Alfredo de Figueiredo. O título “Assassinato de El Rei D. Carlos e de seu filho o Príncipe Real” é seguido dos subtítulos “Nota oficiosa” e “O novo monarca”. Mais uma vez, os acontecimentos essenciais são apresentados em três chamadas informativas. Depois, os acontecimentos, neste caso acompanhados de duas imagens representativas do Rei D. Carlos e do Príncipe D. Luís Filipe, são narrados com recurso à nota oficiosa proveniente do Governo Civil do Porto. Este procedimento deve ser entendido à luz das obrigações tácitas decorrentes da Lei de Imprensa franquista (de 11 de Abril de 1907) então ainda vigente.
Devemos lembrar que, este é um período em que a pena e a espada andam próximas e os proprietários e os directores de jornais, bem como os jornalistas, estão coarctados da liberdade de expressão e são perseguidos, julgados e condenados a penas de multa ou de suspensão dos seus jornais. Só entre Abril de 1907 e finais de Janeiro de 1908, são suspensos os jornais O Mundo, O País, O Popular, Vanguarda, A Época, Correio da Noite, O Liberal, O Primeiro de Janeiro, A Voz Pública, O Dia e o Jornal do Comércio; e sentam-se no banco dos réus numerosas personalidades, entre as quais se destacam, por lá se terem sentado mais de uma vez, Guerra Junqueiro, França Borges, Artur Leitão, Brito Camacho, Magalhães Lima, António José de Almeida, José do Vale e Meira e Sousa. ~
2. JORNAIS DO NORTE MAIS IMPARCIAIS
Outro diário do norte, O Comércio do Porto, dirigido por F. S. Carqueja, igualmente um dos mais influentes a nível nacional, apolítico, também relata o atentado na primeira página. Eventualmente, devido à hora adiantada a que a informação dos acontecimentos chega ao Porto, o jornal ostenta um título singelo e de tamanho reduzido. À largura de uma coluna – sensivelmente equivalente a duas colunas actuais dos nossos jornais diários -, escreve “S. M. El Rei D. Carlos” e “S. A. O Príncipe Real”. O texto que se segue caldeia as características meramente informativas com a utilização de recursos que apelam à comoção, considerando que o atentado é “uma tragédia tão horrorosa como outra não conhecemos”.
Na segunda-feira, dia 3, O Comércio do Porto, jornal que Ramalho Ortigão, nas Farpas, considera “o primeiro jornal sério da cidade” e aquele que “representa o advento de uma nova era para o jornalismo portuense”, publica um suplemento, ao seu número 29, no qual aborda pormenorizadamente o atentado, evidenciando a intenção de transmitir aos leitores que a tranquilidade reina em todo o país. Aliás, já no dia anterior, O Comércio do Porto apelava para que “a calma dos ânimos” regressasse à política e para que o Estado fosse “reabilitado com alicerces nos verdadeiros patriotas”.
Ainda a norte, O Primeiro de Janeiro, jornal que nasce no seio progressista mas que, não se comprometendo politicamente, apoia discretamente as ideias republicanas, ostenta na sua primeira página a, à primeira vista, estranha manchete “Os sucessos de Lisboa”. Digo estranha à primeira vista, porque a palavra “sucessos” apenas deva ser entendida como aquilo que aconteceu, neste caso, aquilo que aconteceu em Lisboa. Seguem-se os reveladores subtítulos “Morte do Rei D. Carlos e do Príncipe Real” e “Consequências trágicas de um período de opressão”. Deste modo, o jornal dirigido por Tomás Garcia, indigitava os culpados do regicídio.
Classificando o atentado como “alarmante sucesso” que “acaba de emocionar a nacionalidade portuguesa, de há muito tempo para cá sacudida por acontecimentos da maior gravidade”, O Primeiro de Janeiro lamenta não ter, à hora que escreve, “notícias precisas do trágico sucesso, nem facilidade em obtê-las porque o telefone foi vedado ao serviço particular e o telégrafo está funcionando sob a mais rigorosa censura”. Assim, o jornal é obrigado a limitar-se à publicação da nota oficial proveniente do Governo Civil do Porto. Insatisfeito, o jornal arrisca versões ligeiramente diferentes dos acontecimentos e, concluindo que o momento “não é para comentários”, recomenda: “o público que aprecie os acontecimentos e quanto de razão tinham aqueles que de há muito clamavam que a marcha desastrosa dos acontecimentos políticos podia levar a um fim triste”. Afinal, como se verifica, sempre faz o comentário.
3. JORNAIS POLÍTICOS PINTAM REALIDADE
Mas não devemos estranhar o comentário. A Imprensa diária portuguesa, como alerta Mário Matos e Lemos (Jornais Diários Portugueses do Século XX: 72), “ainda não havia saído da etapa histórica do jornalismo ideológico, dos diários de opinião”. Nesta época, existem, em Portugal, vários partidos políticos e todos publicam o seu jornal. Ora, por vezes, a direcção dos jornais é confiada a políticos que deles fazem tribuna para a defesa das suas ideias.
Para mais, alguns dos mais conceituados jornalistas são também políticos que escrevem nos jornais em defesa dos seus interesses partidários ou pessoais, determinando o curso dos acontecimentos políticos e sociais. Estou a falar, entre outros, de homens como Magalhães Lima, fundador e director de O Século; Emídio Navarro que dirigiu o Novidades; França Borges, fundador e director de O Mundo; ou Brito Camacho, director de A Luta.
A verdade é que estamos no tempo dos chamados jornais políticos. Esta situação não é, aliás, exclusiva de Portugal. Em França, como acentua Thomas Ferenczi (L’Invention du Journalisme en France: 12), “a política esteve desde bastante cedo associada à Imprensa”. Aliás, um pouco por toda a Europa, mas especialmente em França, na Inglaterra e na Holanda, como sustenta João Figueira (Os Jornais como Actores Políticos: 27), o jornalismo afirma-se “através do cruzamento dos universos da cultura e da política”.
Evidentemente, há jornais de informação mais generalista, que se apresentam como detentores de uma maior objectividade e independência face aos poderes instituídos. Mas, mesmo assim, são jornais comprometidos com determinados interesses da sociedade. Este é, na verdade, um tempo do jornal comprometido. O jornalista é um elemento “activo e participativo” (João Figueira: 28). Alheio a conceitos como isenção e verdade, hoje elevados à categoria de sacramentos da profissão, o jornalista desta época não se limita a transmitir o que observa e escuta, antes acrescentando os seus próprios comentários e opiniões. O resultado é quase sempre não apenas um retrato da realidade mas uma complexa pintura.
4. JORNAIS DE INFORMAÇÃO GENERALISTA
Entre os jornais que se apregoam como independentes de partidos situa-se o diário lisboeta Diário de Notícias de que é director Brito Aranha. No entanto, sendo um jornal liberal moderado, tanto quanto possível respeitador do rigor da notícia, é, ainda assim, comprometido com os interesses da burguesia. No Diário de Notícias, o regicídio é noticiado na primeira página com o título “Morte D’ El-Rei e do Príncipe Real D. Luís Filipe”, precedido do antetítulo “Gravíssimo atentado contra a família real”. A manchete, em grandes parangonas, é seguida de uma entrada, paginada a toda a largura da primeira página e que remete para a página 2, onde o acontecimento é desenvolvido com grande pormenor. Na entrada, é registado o facto de se tratar do primeiro regicídio da nossa História, mas, curiosamente, recordando a existência de tentativas de atentados contra a vida de outros monarcas portugueses.
Comparando com outros atentados similares ocorridos no estrangeiro, o Diário de Notícias considera o regicídio “mais grave, uma vez que, em simultâneo, foi assassinado o rei e o seu filho primogénito”. Este jornal evoca também o sofrimento das duas rainhas, a esposa e a mãe de D. Carlos, que, além do mais, como frisa, sofrem “temerosas pelo destino incerto da pátria estremecida”, isto é, receiam as consequências políticas do atentado. Digamos, portanto, que o Diário de Notícias é, a par com O Século, um dos jornais que nos faculta uma das visões mais globais e, em certa medida, mais imparciais, do acontecimento.
O Século, jornal dirigido pelo republicano Sebastião de Magalhães Lima, seguramente o jornal mais popular do país e, por consequência, o diário de maior tiragem, escolhe para noticiar o atentado a manchete “Morte de El-Rei D. Carlos e do Príncipe Real”, precedida do antetítulo “Os últimos acontecimentos” e seguida do subtítulo “O Infante D. Manuel proclamado rei”.
Sem qualquer receio, O Século emite a sua opinião, considerando que “o momento é de imensa gravidade”, e salientando que ninguém pensa em ocultar a situação, porque – e estou a citar – “a nação portuguesa, consciente do perigo, sabedora da verdade, pasma de horror ante essa carnificina, que, num mar de sangue e em nuvens de medonho tiroteio, sacudiu rudemente o trono”.
Ainda na primeira página, e continuando na página 2, O Século publica diversos pormenores do acontecimento, nomeadamente o descarrilamento ocorrido na Casa Branca, a poucos minutos de Lisboa, o desembarque na estação, a recepção à família real e a sessão de cumprimentos, a numerosa assistência, as damas da corte, o Ministério, os primeiros tiros, até à confusão gerada no Terreiro do Paço quando todos tomam consciência de que o rei está morto e o filho está à beira da morte.
Por sua vez, a Ilustração Portuguesa, suplemento semanal ilustrado do jornal O Século, que tem como director Carlos Malheiro Dias, no dia 3, ainda publica as fotografias do rei e da família em Vila Viçosa, a verdejante vila alentejana, abrigada pela serra de Borba, antiga corte da Casa de Bragança, onde D. Carlos gostava de passar o Inverno, sobretudo dedicando-se a uma das suas actividades preferidas – a caça de veados, gamos e javalis, que abundavam na Tapada real. Conta a Ilustração Portuguesa que “nunca como neste mês de Janeiro de 1908, a corte se demorara tanto no palácio de Vila Viçosa, o mesmo donde, em 1640, os conspiradores trouxeram para o trono o então duque D. João II.
Só na edição da semana seguinte, que saiu a 10 de Fevereiro, a Ilustração Portuguesa começa a desfolhar o livro do atentado. A partir daí, dedicou várias edições à publicação de numerosas fotografias da família real em Vila Viçosa, algumas da autoria de D. Carlos, outras de D. Luís Filipe e outras ainda captadas pelo conceituado fotógrafo da época Joshua Benoliel, convidado habitual de D. Carlos para acompanhar as caçadas. A estas fotografias, seguem-se outras do atentado e, finalmente, páginas e páginas cheias de iconografias do regicídio.
5. JORNAIS REPUBLICANOS SEM COMENTÁRIOS
Os jornais assumidamente republicanos, como O Mundo, A Luta, e o Vanguarda, também noticiam o regicídio nas suas primeiras páginas mas utilizam especiais precauções. O Mundo, jornal dirigido por França Borges, um dos mais implacavelmente perseguidos pelo governo da Monarquia, dá conta do acontecimento com o título “Morte de El Rei e do Príncipe Real”, precedido do antetítulo “Atentado contra a família real no Terreiro do Paço, por ocasião do regresso de Vila Viçosa” e, de seguida, limita-se a reproduzir o breve texto publicado, na noite do dia do atentado, pelo jornal regenerador Novidades, abstendo-se de tecer quaisquer comentários, alegando “motivos fáceis de calcular”.
A Luta, jornal de Brito Camacho, dá também uma notícia breve sobre o regicídio e, na edição de dia 3, justifica esse facto com o “desencontro de informações” verificado no dia do atentado. Refere que “a emoção fácil de compreender e que originava tantos e tão opostos boatos, não permitia redigir […] uma notícia”. Assim se percebe que A Luta pretende ganhar tempo para averiguar o que se passou e definir então a sua estratégia de informação.
Já esclarecido e decidido, o jornal abre, no dia seguinte, a sua primeira página com uma afirmação de Ferreira do Amaral, intitulada “Um testemunho insuspeito”, reiterando que, em Portugal, “não existe […] estadista que tenha as condições de excepção exigíveis para poder imprimir, na orientação geral do país, um objectivo definido e certo no que respeita a ramo algum da actividade nacional e muito menos no que se refere à defesa das suas fronteiras e das suas colónias”. Depois, segue com o relato do atentado, da informação da entrega da cidade ao comando militar, das ruas patrulhadas pela força armada, do reconhecimento dos regicidas, da subida ao trono de D. Manuel II, das mais recentes resoluções do Conselho de Ministros, da constituição de um ministério de acalmação, bem como com a reprodução da nota oficiosa publicada, no dia seguinte ao atentado, pelo Diário do Governo. ~
Aliás, esta nota oficiosa, assinada por D. Manuel II, publicada pelo Diário do Governo, é integralmente reproduzida pela maioria dos jornais diários. Apesar de ser uma nota breve, reveste-se de especial relevância, dado que é a primeira manifestação pública de D. Manuel II. Do texto da nota sobressai muito mais do que a manifestação de pesar do jovem rei em face da morte do pai e do irmão. É um texto impregnado da personalidade de João Franco e das políticas da ditadura. Senão vejamos: para além do juramento habitual do novo rei e da garantia que o mesmo juramento seria ratificado, em breve, nas Cortes Gerais da Nação, a nota finaliza com a seguinte afirmação: “[…] declaro que me apraz que os actuais ministros e secretários de Estado continuem o exercício das suas funções”. Assim é transmitida, ao país, uma imagem de normalidade constitucional e de estabilidade governativa. Sabemos, hoje, ilusória.
O jornal Vanguarda, que se assume no seu próprio cabeçalho como republicano independente, noticia o atentado com precaução idêntica à adoptada por O Mundo e por A Luta. Sob a direcção de Magalhães Lima escolhe o título “Morte de D. Carlos e de seu filho D. Luís Filipe” e os subtítulos “A carruagem real é atacada - O infante D. Manuel é ferido - Populares mortos a tiro – Prisões – Proclamação do novo rei – Outros pormenores”. A seguir escreve: “Dada a circunstância anormal em que se encontra a Imprensa, especialmente a Imprensa republicana, e depois do decreto publicado ontem, limitamo-nos a recortar do nosso colega Novidades os pormenores acerca dos extraordinários e sensacionais acontecimentos de ontem”.
6. JORNAIS MONÁRQUICOS APELAM À COMOÇÃO
Como vemos, o Vanguarda refugia-se no decreto assinado em Vila Viçosa - publicado pelo Diário do Governo a 31 de Janeiro e pelos jornais diários a 1 de Fevereiro - para não relatar por palavras próprias o regicídio e, deste modo, não arriscar alguma das sanções previstas na nova lei franquista. Recordemos que este decreto acaba com as imunidades parlamentares e prevê a deportação para uma das províncias ultramarinas dos que atentem contra a segurança do Estado, a tranquilidade pública e os interesses gerais da nação. Ou seja, de todos os que abrissem a boca ou escrevessem nos jornais algo com que a ditadura não concordasse. Mais, o «decreto do desterro» - como ficará conhecido - contempla que as condenações sejam decididas pelo governo sem qualquer intervenção do poder judicial.
Os receios sentidos e cautelas exigidas aos jornais republicanos vigiados à lupa pela ditadura franquista, não fazem, no entanto, sentido para os jornais do regime como o Diário Ilustrado, regenerador liberal, franquista, dirigido por Álvaro Pinheiro Chagas. Assim, o Diário Ilustrado enche a sua primeira página com aquilo que denomina como “Infame atentado”, seguido do título “Assassinato de sua majestade El Rei D. Carlos e de Sua Alteza o Príncipe Real”, incluindo ainda o subtítulo “Proclamação de El Rei D. Manuel”. O diário franquista escreve, na primeira página, um longo texto em que considera este atentado como “um dos mais hediondos e infames atentados de que reza a história de todos os povos”.
Seguidamente, o Diário Ilustrado elucida o seu público, enfatizando que “o momento é para chorar o rei benigno, valoroso, amigo, apaixonado da sua pátria e do seu povo, de cujas glórias fazia um culto, e cujas prosperidades eram do seu espírito o constante e supremo cuidado”. Quanto ao príncipe D. Luís Filipe, retrata-o como uma “pobre e inocente vítima de uma fúria canibalesca, […] que ainda antes de provar as suas aptidões de reinante foi imolado aos instintos abomináveis de criaturas que uma aberração da natureza colocou entre a espécie humana”.
Evocando o sentimento de dor da rainha enquanto viúva e mãe, provavelmente para despertar a compaixão das mulheres portuguesas, o Diário Ilustrado frisa que o momento “se é de inenarrável dor, é também de molde a exacerbar em todos o sentimento sempre vivo do mais dedicado patriotismo”. Em resumo, conclui que D. Manuel “tem em volta do seu trono a dedicação, o amor e o apoio decidido de todos os portugueses dignos de tal nome”.
A Nação, jornal monárquico miguelista, dirigido por Franco Monteiro, sabe que, num país como Portugal, no início do século XX, pode mobilizar os populares, pelo que escolhe um título apelativo: “Horroroso crime”, ao qual acrescenta um texto à dimensão de toda a página, no qual refere que “nos anais da História portuguesa escreveu-se uma página nova nas suas consequências e única nos seus efeitos tão nefastos como selvagens”. Num gesto de apelo à união dos portugueses, sublinha: “Estamos todos de luto. A tragédia de sábado feriu-nos a todos. Nem há já arraiais políticos: há homens, há corações. Não há a dor de uma família augusta: há o sentimento de uma nacionalidade inteira”.
CONCLUSÃO: INFORMAÇÃO IDEOLOGIZADA
Em suma, as manchetes e as primeiras páginas do regicídio aqui analisadas, à semelhança de tantas outras manchetes e primeiras páginas publicadas em dezenas de jornais diários no domingo 2 de Fevereiro (1908), desnudam a História de Portugal deste período diante dos nossos olhos. A Imprensa, apenas a preto e branco, com muito reduzido recurso a fotografias ou iconografias, revela-se, ainda assim, diante de nós, como extraordinariamente poderosa.
É uma Imprensa que relata o acontecimento, transmitindo as informações com assumida parcialidade, omitindo, por vezes, algumas informações; dando, outras vezes, opinião sobre o acontecimento e suas consequências; enfim, é uma Imprensa que apresenta uma narrativa que visa influenciar a formação da opinião pública - uma opinião pública que, à época, é, naturalmente, muito restrita.
É, também, uma Imprensa que utiliza uma narrativa denunciadora, por um lado, da existência de uma censura institucionalizada e de um controlo dos jornais, mas, por outro lado, reveladora da persistência de uma luta militante travada em nome de interesses políticos, de ambições pessoais e da liberdade de Imprensa.
A linguagem dos jornais diários portugueses evidencia que a Imprensa está ainda, nesta época, ligada à política. Ao lado dos comícios públicos, como sustenta José Tengarrinha (História da Imprensa Periódica Portuguesa: 240) é a Imprensa “a tribuna mais incisiva e de mais profundo efeito, preparando os espíritos para o movimento que eclodiria vitoriosamente em 5 de Outubro”.
A informação é, portanto, assumidamente ideologizada. A linguagem maniqueísta, a escrita adjectivada, a opinião e informação misturadas no mesmo texto, a forma notória como se expõem os adversários políticos de cada jornal, assim como a utilização de fontes anónimas concordantes com a linha editorial do jornal e a concessão do direito à palavra exclusivamente a personalidades identificadas com o pensamento do jornal, isto é, o conjunto de elementos que João Figueira (Os Jornais como Actores Políticos: 215) encontra nos jornais portugueses no período que se seguiu ao 25 de Abril de 1974, caracteriza na perfeição o jornalismo existente aquando do regicídio.
BIBLIOGRAFIA CITADA LEMOS, Mário Matos e, Jornais Diários Portugueses do Século XX. Um Dicionário, Ariadne, Coimbra, 2007.
FIGUEIRA, João, Os Jornais como actores políticos, MinervaCoimbra, Coimbra, 2007.
FERENCZI, Thomas, L´Invention du Journalisme en France, Petite Bibliothèque Payot, Paris, 1996.
TENGARRINHA, José, História da Imprensa Periódica Portuguesa, Caminho, Lisboa, 1989.
TENGARRINHA, José, Imprensa e Opinião Pública, MinervaCoimbra, Coimbra, 2007.

quinta-feira, janeiro 31, 2008

DO 28 DE JANEIRO (1908) AO REGICÍDIO

O PENÚLTIMO INVERNO DA MONARQUIA
Por Noémia Malva Novais
INTRODUÇÃO
Há 100 anos, na tarde de sábado, primeiro dia de Fevereiro, o rei D. Carlos foi assassinado no Terreiro do Paço, em Lisboa, poucos minutos depois de ter regressado de Vila Viçosa, onde estivera, durante o mês de Janeiro, entregue àquela que era uma das suas paixões: a caça. Com ele, foi igualmente morto a tiro o filho mais velho D. Luís Filipe e ferido o filho mais novo D, Manuel. Este tornou-se rei. A Monarquia sobreviveu, mas por pouco tempo, porque há muito que a palavra dos republicanos era seguida como se fosse palavra de evangelho. Assim, a República chegou, pouco mais de dois anos depois, sem sobressaltos, e quase sem derrame de sangue.
Até hoje, os investigadores dividem-se entre a teoria da conspiração e a tese de que se tratou de um acto isolado de dois membros da Carbonária. Na verdade, não se provou ainda que houvesse uma conspiração para matar o rei. O que havia era uma conspiração para assassinar o presidente do Conselho de Ministros, o ditador João Franco. Os regicidas Buíça e Costa, como não conseguiram apanhar o ditador, desesperaram e atiraram sobre a família real. Logo, o regicídio foi um acto isolado de dois fanáticos carbonários que decidiram, no momento, substituir as balas de papel (artigos na Imprensa) por balas verdadeiras.
A contagem decrescente para o regicídio começou com o Ultimatum inglês (1890) e prosseguiu com a falhada revolta do Porto (31 de Janeiro 1891) mas teve um marco decisivo na dissidência de José Maria de Alpoim, em 1905, do Partido Progressista. Apesar da primeira dissidência digna de relevo ser a de João Franco, que, em Maio de 1901, se incompatibilizou com o Partido Regenerador e criou o Centro Regenerador Liberal, que se assumiu como alternativa ao sistema rotativista e que, curiosamente, chegou a entender-se com os republicanos no Parlamento. Porém, João Franco fez o seu percurso nas fileiras monárquicas, enquanto José Maria de Alpoim conspirou com o Partido Republicano.
1. ALPOIM: DA VALSA ROTATIVISTA AO COMITÉ REVOLUCIONÁRIO
José Maria de Alpoim, conselheiro de origens na pequena aristocracia, dançava a valsa rotativista, acertando o passo como, e com quem, se ajeitava melhor. Revelando pouca convicção monárquica, Alpoim observava atentamente a acção republicana na Imprensa, nos comícios, nas homenagens aos seus caudilhos, deixando perceber que estava pronto a alinhar com os republicanos no combate à Monarquia. É por isso que rombo feito por José Maria de Alpoim é o que mais abala as instituições monárquicas.
Os republicanos souberam aproveitar a paixão dos que gravitavam à volta de Alpoim. E Alpoim, cego pela ânsia de poder, enveredou abertamente pela conspiração, elegeu o regime monárquico como seu inimigo figadal, e, finalmente, em Maio de 1907, sendo convidado a integrar o Comité Revolucionário destinado a derrubar, a prazo, a Monarquia e a instaurar a República, aceitou. Tornou-se companheiro de luta de Afonso Costa (e outros) e, consigo, levou o seu velho amigo Francisco Correia de Herédia, mais conhecido por Visconde da Ribeira Brava.
Por esta altura, falia a coligação liberal de João Franco e José Luciano de Castro. A única saída constitucional para a crise suscitada pela ruptura da coligação era a da queda do governo e a da eventual realização de eleições. Mas João Franco, como considera o historiador Amadeu Carvalho Homem, “gozava da indefectível confiança régia”, pelo que D. Carlos iria apoiar o seu avanço para a ditadura. Como, então, observa o prestigiado jornalista republicano João Chagas, o rei governava “contra todos os partidos e homens que o serviram”, provocando, de dia para dia, um aumento da sua própria vulnerabilidade.
Neste contexto, João Franco, acusado de ter “um orgulho desmedido e um temperamento tempestuoso”, em nada contribuia para a desejada acalmação, porquanto não dava tréguas ao republicanismo, combatendo-o sem qualquer diplomacia. Para mais, o evangelho revolucionário de João Chagas, Magalhães Lima, Basílio Teles, Guerra Junqueiro ou França Borges, começava a ter um séquito de fiéis seguidores. Mesmo os mais indecisos eram atraídos pelos dotes oratórios de agitadores como António José de Almeida ou Afonso Costa.
2. MAÇONS, MONÁRQUICOS, REPUBLICANOS E CARBONÁRIOS
A ditadura administrativa de João Franco, inequivocamente apoiada por D. Carlos, a campanha pré-revolucionária dos republicanos na Imprensa, o sucesso dos comícios republicanos, a elevação de alguns republicanos, como Bernardino Machado, ao estatuto de heróis, o rastilho da conspiração lançado nos quartéis, o odor da revolução sentido nos bairros populares lisboetas, mostram o caminho ao Grão Mestre da Carbonária Portuguesa - Luz de Almeida percebe que é chegada a hora de reactivar a Carbonária e espalhar, sem mais demora, a semente da revolução. Luz de Almeida reorganiza a Carbonária Portuguesa (criada em 1896-97 a partir da Maçonaria Académica) e define-a como uma “legião de revolucionários, firmemente resolvidos a sacrificar tudo, inclusive a própria vida, para precipitar a queda da Monarquia”. Entre os seus «bons primos» - assim se tratavam entre si os membros da Carbonária – contam-se António Maria da Silva e Machado Santos.
Como sobressai da leitura de Jorge Morais, no seu recente estudo sobre o Regicídio, a intenção de Luz de Almeida, simultaneamente maçon, com assento no Conselho da Ordem, no Grande Oriente Lusitano, é, claramente, superiorizar-se à Maçonaria e ao Partido Republicano e, finalmente, implantar a República. Porém, se, para Luz de Almeida, é difícil controlar as duas facções que coexistem no seio da sua associação secreta – a facção republicana e a facção anarquista -, é-lhe impossível saber o que andam a fazer os membros de outra organização carbonária que opera em Portugal – a Carbonária Lusitana. Esta, que tem como Grão Mestre Heliodoro Salgado, embora tenha poucos elementos, é mais radical, integrando-a, nomeadamente, alguns dos fabricantes de bombas de Lisboa, a quem os republicanos recorrem desde então (1907) e até 1910.
Mas voltemos ainda, por instantes, à relação de Luz de Almeida com a Maçonaria, porquanto este facto tem conduzido alguns estudiosos à conclusão de que, no seio do Grande Oriente Lusitano, existia uma atmosfera favorável à revolução. Aliás, alguns investigadores, apoiando-se no facto de maçons ilustres militarem nas fileiras republicanas e de altos dirigentes republicanos integrarem o Grande Oriente Lusitano, e ainda, por alguns maçons serem simultaneamente carbonários, sugerem que a Maçonaria conhecia e protegia o plano de eliminação dos governantes e, quiçá, da família real.
Soa improvável, porque um plano desta natureza ia contra o ideário maçónico. Mais, a acção do Grande Oriente Lusitano não se resume a contactos com os carbonários desejosos de sangue. Os maçons reuniam também com os republicanos de cartola - aqueles que defendiam a via eleitoral para derrube da Monarquia; com os monárquicos de todos os quadrantes – regeneradores, progressistas, dissidentes progressistas e até franquistas; Mais ainda, o Infante D. Afonso, irmão de D. Carlos, era maçon e não parece aceitável que quisesse eliminar a sua própria família. Oliveira Marques, nos seus estudos reconhecidos sobre a Maçonaria, desvenda este eventual enigma quando esclarece que, embora a grande maioria dos maçons se tivesse rendido já ao ideal republicano, “existiam, sem dúvida, maçons monárquicos”.
É evidente que, nas principais lojas lisboetas da Maçonaria, como a Loja Montanha, pontificavam maçons que admitiam o recurso a acções revolucionárias contra as instituições monárquicas. Aliás, o ambiente convulsivo de Lisboa, e do país, convidava a conspirar e chamava à revolução. Porém, as lojas da Maçonaria não eram precisas, nem aconselháveis, para o efeito. As reuniões dos conspiradores de todos os quadrantes políticos e ideológicos ocorriam em ruas desertas, a horas tardias, ou em descampados, nas águas furtadas da casa de um conspirador mais destemido ou mesmo num gabinete da sede do jornal O Dia, do Dissidente Progressista José Maria de Alpoim. Contudo, é evidente que existia uma espécie de rede de comunicações entre maçons, monárquicos, republicanos e carbonários.
3. FRANCO CALA A IMPRENSA MAS NÃO IMPEDE A CONSPIRAÇÃO
Ainda assim, seis meses antes do 28 de Janeiro (de 1908), a polícia lisboeta ignorava que se movimentavam já na capital vários grupos civis e duas carbonárias concorrentes mas com um mesmo objectivo: derrubar a Monarquia. Não admira, por isso, a reacção de surpresa da polícia de Lisboa quando, em Agosto de 1907, acontece uma explosão acidental, que provoca a morte de uma pessoa e ferimentos em outras duas, todas eventualmente carbonárias, que se dedicavam ao fabrico artesanal de bombas. Esta explosão é o primeiro sinal denunciador de actividade revolucionária entre nós. O próprio João Franco reconhece-o. O Infante D. Manuel também, tanto que o denomina, no seu diário, como “primeiro sintoma”.
Como cinquenta anos mais tarde escreverá Aquilino Ribeiro, “a revolta incubava na longa penumbra das águas furtadas”. “Conspirava-se por todos os cantos, segredavam-se instruções, as reuniões secretas de oficiais tornavam-se mais frequentes, as lojas dos armeiros esvaziavam-se como por encanto” (Jorge de Abreu: 20). “Sabia-se que em poder dos revoltosos, disseminados pela cidade, nas proximidades dos quartéis e nos pontos estratégicos das passagens forçadas das tropas, existiam quartos que outra coisa não eram senão depósitos de bombas […]” (Carlos Malheiro Dias: 490-491).
Veja-se o caso de Aquilino Ribeiro que, em Novembro de 1907, a pedido de Luz de Almeida, recebeu, no seu quarto alugado da Rua do Carrião, dois caixotes de material destinado ao fabrico artesanal de bombas. Ali mesmo, dois carbonários – Gonçalves Lopes e Belmonte de Lemos – morreram, devido a uma explosão verificada enquanto fabricavam umas quantas bombas. Aquilino Ribeiro foge pelo meio da multidão que, ouvindo o estrondo, se concentra na rua mas é avistado pela polícia. Escapou da morte mas não se livrou da prisão. (Por pouco tempo, porque conseguiu evadir-se da esquadra do Caminho Novo numa madrugada chuvosa de um domingo dos inícios de Janeiro (dia 12) de 1908.
Entretanto, D. Carlos, a quem nem republicanos nem monárquicos perdoam o facto de ter confiado a João Franco o destino da pátria, bem como ter deixado o Chefe do Ministério regularizar por decreto os adiantamentos à Casa Real, perde os aliados que ainda lhe restam entre os partidos rotativistas. Com a morte de Hintze Ribeiro, o Partido Regenerador passa a ser comandado por Júlio de Vilhena, o qual tenta entender-se com os líderes do Partido Progressista e da Dissidência Progressista, respectivamente José Luciano de Castro e José Maria de Alpoim, a fim de forçarem a abdicação de D. Carlos a favor do Príncipe Real D. Luís Filipe. Acabam por não conseguir mas deixam a olho nu o estado de adiantada decomposição em que se encontra o sistema político.
Neste contexto, de um país sem Parlamento, a Imprensa, vigiada à lupa pela ditadura franquista, reforça o seu poder. Podemos mesmo considerar que um facto político só o é mesmo depois de ter sido publicado nas colunas dos jornais diários. Assim sendo, o mesmo João Franco que amnistia os crimes de Imprensa quando chega ao poder em Maio de 1906, desencadeia uma repressão sem precedentes sobre as empresas proprietárias dos jornais, os directores e os jornalistas, que culmina com julgamentos de jornais e jornalistas, aplicação de multas e várias suspensões de diários como O Mundo, O País, O Popular, Vanguarda, A Época, Correio da Noite, O Liberal, O Primeiro de Janeiro, A Voz Pública, O Dia e o Jornal do Comércio.
João Franco não é o primeiro governante português, nem será, evidentemente, o último, a pretender calar a Imprensa. Porém, os revolucionários, republicanos ou monárquicos, não se deixam intimidar e não baixam a guarda. Por isso, entre Abril de 1907 e Janeiro de 1908 sentam-se no banco dos réus numerosas personalidades, entre as quais se destacam, por lá se terem sentado mais de uma vez, Guerra Junqueiro, França Borges, Artur Leitão, Brito Camacho, Magalhães Lima, António José de Almeida, José do Vale e Meira e Sousa.
4. “MANDA QUEM PODE”, CONSPIRA QUEM DEVE
Enquanto em Portugal vigora esta lei, que Júlio de Vilhena crismou, em evidente associação à «ignóbil porcaria» baptizada por João Franco, como «ignóbil ferrolho», no estrangeiro, os jornais escreviam sobre a difícil situação política, económica e financeira de Portugal. É nesse contexto que o jornal Le Temps publica uma entrevista com D. Carlos, na qual o rei enaltece a política franquista. Diz o rei, entre outras coisas, que “[…] Precisava de uma vontade sem fraqueza para conduzir as minhas ideias a bom caminho. Franco era o homem que eu desejava. De há muito que o tinha em vista. No momento oportuno, chamei-o”. A entrevista é, seguidamente, publicada, em Portugal, pelo Diário Ilustrado. É como se a sorte grande tivesse saído aos republicanos. De uma assentada, o rei rompia a norma constitucional, interferia na governação e assumia as repressivas medidas franquistas como suas.
A partir deste momento, como reflecte Amadeu Carvalho Homem na sua obra Da Monarquia à República, “a impopularidade da família real e dos seus círculos mais chegados atingiu tais cúmulos que um plumitivo de baixo nível cultural e moral, [de seu nome] António de Albuquerque de Meneses e Lencastre, pode publicar anonimamente um romance-panfleto infamante para o Paço, intitulado O Marquês da Bacalhoa, sem que se tivesse levantado um coro imenso de vozes indignadas”. Simultaneamente, a organização revolucionária, dirigida especialmente pelo Partido Republicano e pela Dissidência Progressista, apoiada no terreno pela Carbonária, “avança[va] a um ritmo avassalador” (Amadeu Carvalho Homem: 133).
O movimento revolucionário, que germinara após a dissolução inconstitucional da câmara dos deputados, primeiro através da organização revolucionária dos republicanos, e, posteriormente, através da acção dos liberais, sem distinção de partidos, em torno da bandeira da resistência a uma tirania que - como escreve o jornalista Cunha e Costa, na Ilustração Portuguesa - “deixou a perder de vista as máximas violências da repressão cabralista”, aumenta à medida que, uma a uma, desaparecem todas as liberdades políticas, apenas restando, como, então, apregoa Bernardino Machado, a liberdade de ódio.
A ditadura reforça a resposta policial mas, mesmo assim, o movimento revolucionário ganha força, quase explodindo quando o ministro da Justiça Teixeira de Abreu declara a um jornalista que “manda quem pode”. Esta afirmação congrega cada vez mais cidadãos em torno do movimento revolucionário. A conspiração alastra. Conspira-se nas ruas, nas praças, nas lojas, nos quartéis, em terra e no mar” (Cunha e Costa). Em suma, todo o país é uma vasta conspiração.
5. PRISÃO DE REPUBLICANOS AGENDA GOLPE PARA 28 DE JANEIRO
Perante este cenário, a 21 de Janeiro (1908), o governo franquista lança mais lenha para a fogueira. Sem mais delongas, depois de prender Luz de Almeida, manda prender João Chagas quando jantava na Charcuterie Française da Rua do Carmo e França Borges quando saía do seu jornal na Rua de S. Roque. Na manhã seguinte, manda também prender Alfredo Leal e António José de Almeida à saída de suas casas. O governo tinha, finalmente, compreendido que havia um movimento revolucionário em marcha, decidido a apenas parar quando conseguisse derrubar a Monarquia e implantar a República. Julgava, no entanto, jugular a revolução com a detenção dos principais organizadores. Porém, estas prisões, sob a acusação de conspiração, colocam o golpe na agenda de 28 de Janeiro (1908) e Afonso Costa no comando do movimento revolucionário.
A 27 de Janeiro, o Partido Republicano distribui um manifesto contra a política de perseguição do governo franquista, declarando que a intenção dos republicanos “é suprimir as opressões e não os homens do regime”. Em reacção a este manifesto republicano, o governo manda fazer buscas domiciliárias sucessivas e decreta a prevenção nos quartéis e na polícia. Entretanto, o boato de que João Chagas morrera na prisão anda de boca em boca, aumentando a fúria de muitos populares para quem João Chagas é intocável.
É então que o plano operacional da revolução, que conheceu várias versões - uma revolta popular canalizada para o Terreiro do Paço, um ataque armado ao Conselho de Ministros ou um assalto ao Paço – recebe o seu aval político final. Numa reunião decorrida em casa de Luís Grandela, Afonso Costa e o Visconde da Ribeira Brava decidiram que o plano adoptado era o que visava assassinar o ditador. José Maria de Alpoim deveria tomar posição no elevador da Biblioteca, a partir do qual, na companhia de Afonso Costa e dos populares, deveriam assaltar a Câmara Municipal e implantar a República.
A 28 de Janeiro, corre o boato de que o conflito vai estoirar. Assim estava programado. José Maria de Alpoim assume a sua posição com João Pinto dos Santos, Egas Moniz e outros. Entretanto chegam Afonso Costa, o Visconde de Pedralva e outros mais. Durante toda a tarde, esperam sinal da revolução mas nada sucede. Começam a sentir que a revolta fracassara mas, nada podendo fazer, mantém-se no elevador. Enquanto isso, alguns elementos da Carbonária rumam à Avenida da Liberdade, pela qual o ditador deveria passar no regresso a casa ao final da tarde. Porém, João Franco andava há três dias numa correria entre a sua casa e a casa da sua sogra e, no dia 28 decide ir dormir ao governo civil.
No elevador da Biblioteca, os conspiradores continuam a aguardar por notícias mas já percebendo que a revolta fracassara. Pouco depois das 22 horas, a polícia, sabendo que a essa hora o elevador não funcionava – parava às 21 horas e nesse dia parou às 18 -, descobriu Afonso Costa e o Visconde da Ribeira Brava numa dependência do elevador da Biblioteca, ao Chiado, com as mãos num conjunto de revólveres, punhais e carabinas. Daí em diante, o movimento revolucionário de 28 de Janeiro (1908) fica conhecido como a «intentona da Biblioteca».
Quase em simultâneo, os populares envolvem-se em conflitos com a polícia na proximidade de diversas esquadras da capital. No Rato, um polícia é morto e outro ferido. Ouvem-se tiroteios rápidos em vários pontos da cidade. Num quartel são detidos dois homens na posse de bombas. Pouco depois da meia-noite, Egas Moniz, que acabara de chegar a casa, é preso. Já de madrugada, Afonso Costa e o Visconde da Ribeira Brava são interrogados e conduzidos ao quartel de Cabeço de Bolla; Egas Moniz é transportado para o quartel dos Loyos; cerca de uma centena de detidos – maioritariamente médicos, jornalistas e comerciantes – são levados para o Forte de Caxias. As rusgas prosseguem ao longo da madrugada.
Estranhamente, depois desta convulsão nocturna, Lisboa amanhece calma. Mas, por pouco tempo. A polícia tem em mãos diversos mandados de captura visando diversas personalidades dissidentes progressistas que teriam sido avistadas nas imediações do elevador da Biblioteca. É preso o deputado João Pinto dos Santos à saída de sua casa. Os seus correligionários Visconde do Ameal e Visconde de Pedralva conseguem fugir para Espanha. A casa de José Maria de Alpoim é cercada pela polícia mas este já fugira de Lisboa. Entretanto, são encontradas armas, munições e bombas perto dos quartéis de Cabeço de Bolla e de Santa Bárbara. De seguida, alguns oficiais e sargentos são presos. Como escreve também Cunha e Costa, é evidente que havia “uma conspiração da nação armada contra a ditadura”, mas é igualmente claro que a conspiração fora jugulada.
6. O «DECRETO DO DESTERRO»
Contudo, a ditadura pretendeu castigar exemplarmente os revoltosos encarcerados. No dia seguinte à revolta malograda (29 de Janeiro), o temperamento tempestuoso de João Franco torna-se mais evidente do que nunca. Com as prisões e os fortes cheios de suspeitos, o ditador apressa-se a reunir o seu Conselho de Ministros, na sua casa da Rua Alexandre Herculano, e a redigir um decreto que acaba com as imunidades parlamentares e prevê a deportação para uma das províncias ultramarinas dos que atentassem contra a segurança do Estado, a tranquilidade pública e os interesses gerais da nação. Mais: o decreto contempla que as condenações sejam decididas pelo governo sem qualquer intervenção do poder judicial.
O «decreto do desterro» - como ficará conhecido – foi levado, no dia 30, em mão, pelo ministro da Justiça Teixeira de Abreu, a Vila Viçosa, onde o rei se encontra, nas suas habituais caçadas de Inverno. João Franco pretende que o rei assine o decreto a tempo de o publicar e fazer entrar em vigor a 31 de Janeiro, data do aniversário da revolta do Porto (31 de Janeiro de 1891), um acontecimento emblemático para os republicanos.
Assim foi. Sábado, 1 de Fevereiro, os jornais publicam o decreto nas primeiras páginas. Lisboa desperta, como habitualmente, com os pregões dos ardinas. A notícia causa assombro. Todos se interrogam se D. Carlos regressa a Lisboa nesse mesmo dia, como fora anunciado. Os mais avisados pensam que soa a provocação. D. Carlos tem consciência da gravidade do decreto assinado em Vila Viçosa. Como relata a Ilustração Portuguesa, ao desembarcar, dirige-se a João Franco e pergunta pela situação na capital. O ditador responde que está calma. Garante, assim, a segurança ao rei que é assassinado, conjuntamente com o príncipe real D. Luís Filipe, cerca de 100 passos depois, no Terreiro do Paço.
CONCLUSÃO
D. Manuel II escreverá, quatro meses depois da tentativa de revolução falhada de 28 de Janeiro e do Regicídio: “Na capital estava tudo num estado de excitação extraordinária: bem se viu no dia 28 de Janeiro, em que houve uma tentativa de revolução, a qual não venceu. Nessa tentativa estava implicada muita gente: foi depois dessa noite de 28 que o ministro da Justiça Teixeira de Abreu levou a Vila Viçosa o famoso decreto que foi publicado em 31 de Janeiro. Foi uma triste coincidência ter rubricado nesse dia de aniversário da revolta do Porto. […] Já estavam presas diferentes pessoas políticas importantes. António José de Almeida […], João Chagas […] e outros”.
E prossegue: “Eu estava em Lisboa quando foi o 28 de Janeiro; houve uma pessoa minha amiga (que se não me engano foi o meu professor Abel Fontoura da Costa) que disse a um dos ministros que eu gostava de saber um pouco o que se passava, porque [Lisboa] estava num tal estado de excitação. O João Franco escreveu-me então uma carta, que eu tenho a maior pena de ter rasgado, porque nessa carta dizia-me que tudo estava sossegado e que não havia nada a recear! Que cegueira!”.
Com efeito, podemos afirmá-lo, foi esta cegueira da ditadura que desencadeou o movimento revolucionário de 28 de Janeiro (1908) e armou os braços dos regicidas.
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