segunda-feira, fevereiro 04, 2008

REGICÍDIO: UM DIA DEPOIS

Por Noémia Malva Novais

INTRODUÇÃO

A imagem que estão a ver mostra algumas das manchetes dos jornais diários portugueses do dia 2 de Fevereiro de 1908 – um dia depois do regicídio. Foi impressa há apenas quatro dias no mesmo prelo em que foram feitas as provas de alguns dos mais influentes jornais diários do Norte de Portugal em 1908. Eu mesma a imprimi no prelo de provas que o Museu da Imprensa do Porto tem à disposição de qualquer um de nós que queira experimentar a emoção de um tipógrafo do tempo do duplo assassinato do Rei D. Carlos e do Príncipe Real D. Luís Filipe.
À nossa disposição, o Museu da Imprensa tem também, até finais de Maio próximo, uma exposição intitulada “As manchetes do regicídio” que evidencia a tese que hoje aqui vos trago – a de que a Imprensa, apenas a preto e branco, tem, aquando do regicídio, uma força avassaladora. Com efeito, há exactamente 100 anos - apenas com a diferença de hoje ser sábado e de há um século o dia 2 de Fevereiro ter sido num domingo -, os jornais abrem as suas primeiras páginas com o regicídio, abordando-o como um acontecimento completamente inesperado.
1. REGICIDIO NOTICIADO POR NOTA OFICIOSA

O regicídio é manchete em todos os jornais existentes ao tempo. Alguns jornais decidem mesmo imprimir uma 2.ª edição. Convém recordar que, no início do século XX, os meios técnicos eram escassos e os jornais eram compostos manualmente, o que obrigava os tipógrafos a trabalharem, em média, cerca de 10 horas por dia, para garantirem a saída dos jornais que, então, apresentavam entre duas, quatro e seis páginas. Portanto, o recurso à 2.ª edição foi a forma encontrada por alguns jornais para conseguirem noticiar o duplo assassinato real que, como é sabido, aconteceu ao final da tarde de sábado, dia 1 de Fevereiro, no Terreiro do Paço, em Lisboa.
À hora do regicídio, estariam já prontos alguns jornais. É o caso do jornal O Futuro, o diário de Angola dirigido por Viana Rodrigues, que apenas se publica às terças, quartas e quintas-feiras, e que decide fazer uma 2.ª edição, enchendo a sua primeira página com a notícia do atentado. O título “Horrível tragédia” atravessa a página de uma margem à outra e é complementado por dois subtítulos: “El Rei e o Príncipe Real assassinados” e “O Infante D. Manuel proclamado Rei de Portugal”. Com apenas três frases informativas, o jornal O Futuro utiliza toda a força da Imprensa, estando ao nível das práticas defendidas pelas mais actuais teorias da informação.
O mesmo acontece com o Jornal de Notícias, ex-regenerador, agora independente, e, com certeza, um dos mais importantes jornais diários do Porto e do país, ao tempo dirigido por Alfredo de Figueiredo. O título “Assassinato de El Rei D. Carlos e de seu filho o Príncipe Real” é seguido dos subtítulos “Nota oficiosa” e “O novo monarca”. Mais uma vez, os acontecimentos essenciais são apresentados em três chamadas informativas. Depois, os acontecimentos, neste caso acompanhados de duas imagens representativas do Rei D. Carlos e do Príncipe D. Luís Filipe, são narrados com recurso à nota oficiosa proveniente do Governo Civil do Porto. Este procedimento deve ser entendido à luz das obrigações tácitas decorrentes da Lei de Imprensa franquista (de 11 de Abril de 1907) então ainda vigente.
Devemos lembrar que, este é um período em que a pena e a espada andam próximas e os proprietários e os directores de jornais, bem como os jornalistas, estão coarctados da liberdade de expressão e são perseguidos, julgados e condenados a penas de multa ou de suspensão dos seus jornais. Só entre Abril de 1907 e finais de Janeiro de 1908, são suspensos os jornais O Mundo, O País, O Popular, Vanguarda, A Época, Correio da Noite, O Liberal, O Primeiro de Janeiro, A Voz Pública, O Dia e o Jornal do Comércio; e sentam-se no banco dos réus numerosas personalidades, entre as quais se destacam, por lá se terem sentado mais de uma vez, Guerra Junqueiro, França Borges, Artur Leitão, Brito Camacho, Magalhães Lima, António José de Almeida, José do Vale e Meira e Sousa. ~
2. JORNAIS DO NORTE MAIS IMPARCIAIS
Outro diário do norte, O Comércio do Porto, dirigido por F. S. Carqueja, igualmente um dos mais influentes a nível nacional, apolítico, também relata o atentado na primeira página. Eventualmente, devido à hora adiantada a que a informação dos acontecimentos chega ao Porto, o jornal ostenta um título singelo e de tamanho reduzido. À largura de uma coluna – sensivelmente equivalente a duas colunas actuais dos nossos jornais diários -, escreve “S. M. El Rei D. Carlos” e “S. A. O Príncipe Real”. O texto que se segue caldeia as características meramente informativas com a utilização de recursos que apelam à comoção, considerando que o atentado é “uma tragédia tão horrorosa como outra não conhecemos”.
Na segunda-feira, dia 3, O Comércio do Porto, jornal que Ramalho Ortigão, nas Farpas, considera “o primeiro jornal sério da cidade” e aquele que “representa o advento de uma nova era para o jornalismo portuense”, publica um suplemento, ao seu número 29, no qual aborda pormenorizadamente o atentado, evidenciando a intenção de transmitir aos leitores que a tranquilidade reina em todo o país. Aliás, já no dia anterior, O Comércio do Porto apelava para que “a calma dos ânimos” regressasse à política e para que o Estado fosse “reabilitado com alicerces nos verdadeiros patriotas”.
Ainda a norte, O Primeiro de Janeiro, jornal que nasce no seio progressista mas que, não se comprometendo politicamente, apoia discretamente as ideias republicanas, ostenta na sua primeira página a, à primeira vista, estranha manchete “Os sucessos de Lisboa”. Digo estranha à primeira vista, porque a palavra “sucessos” apenas deva ser entendida como aquilo que aconteceu, neste caso, aquilo que aconteceu em Lisboa. Seguem-se os reveladores subtítulos “Morte do Rei D. Carlos e do Príncipe Real” e “Consequências trágicas de um período de opressão”. Deste modo, o jornal dirigido por Tomás Garcia, indigitava os culpados do regicídio.
Classificando o atentado como “alarmante sucesso” que “acaba de emocionar a nacionalidade portuguesa, de há muito tempo para cá sacudida por acontecimentos da maior gravidade”, O Primeiro de Janeiro lamenta não ter, à hora que escreve, “notícias precisas do trágico sucesso, nem facilidade em obtê-las porque o telefone foi vedado ao serviço particular e o telégrafo está funcionando sob a mais rigorosa censura”. Assim, o jornal é obrigado a limitar-se à publicação da nota oficial proveniente do Governo Civil do Porto. Insatisfeito, o jornal arrisca versões ligeiramente diferentes dos acontecimentos e, concluindo que o momento “não é para comentários”, recomenda: “o público que aprecie os acontecimentos e quanto de razão tinham aqueles que de há muito clamavam que a marcha desastrosa dos acontecimentos políticos podia levar a um fim triste”. Afinal, como se verifica, sempre faz o comentário.
3. JORNAIS POLÍTICOS PINTAM REALIDADE
Mas não devemos estranhar o comentário. A Imprensa diária portuguesa, como alerta Mário Matos e Lemos (Jornais Diários Portugueses do Século XX: 72), “ainda não havia saído da etapa histórica do jornalismo ideológico, dos diários de opinião”. Nesta época, existem, em Portugal, vários partidos políticos e todos publicam o seu jornal. Ora, por vezes, a direcção dos jornais é confiada a políticos que deles fazem tribuna para a defesa das suas ideias.
Para mais, alguns dos mais conceituados jornalistas são também políticos que escrevem nos jornais em defesa dos seus interesses partidários ou pessoais, determinando o curso dos acontecimentos políticos e sociais. Estou a falar, entre outros, de homens como Magalhães Lima, fundador e director de O Século; Emídio Navarro que dirigiu o Novidades; França Borges, fundador e director de O Mundo; ou Brito Camacho, director de A Luta.
A verdade é que estamos no tempo dos chamados jornais políticos. Esta situação não é, aliás, exclusiva de Portugal. Em França, como acentua Thomas Ferenczi (L’Invention du Journalisme en France: 12), “a política esteve desde bastante cedo associada à Imprensa”. Aliás, um pouco por toda a Europa, mas especialmente em França, na Inglaterra e na Holanda, como sustenta João Figueira (Os Jornais como Actores Políticos: 27), o jornalismo afirma-se “através do cruzamento dos universos da cultura e da política”.
Evidentemente, há jornais de informação mais generalista, que se apresentam como detentores de uma maior objectividade e independência face aos poderes instituídos. Mas, mesmo assim, são jornais comprometidos com determinados interesses da sociedade. Este é, na verdade, um tempo do jornal comprometido. O jornalista é um elemento “activo e participativo” (João Figueira: 28). Alheio a conceitos como isenção e verdade, hoje elevados à categoria de sacramentos da profissão, o jornalista desta época não se limita a transmitir o que observa e escuta, antes acrescentando os seus próprios comentários e opiniões. O resultado é quase sempre não apenas um retrato da realidade mas uma complexa pintura.
4. JORNAIS DE INFORMAÇÃO GENERALISTA
Entre os jornais que se apregoam como independentes de partidos situa-se o diário lisboeta Diário de Notícias de que é director Brito Aranha. No entanto, sendo um jornal liberal moderado, tanto quanto possível respeitador do rigor da notícia, é, ainda assim, comprometido com os interesses da burguesia. No Diário de Notícias, o regicídio é noticiado na primeira página com o título “Morte D’ El-Rei e do Príncipe Real D. Luís Filipe”, precedido do antetítulo “Gravíssimo atentado contra a família real”. A manchete, em grandes parangonas, é seguida de uma entrada, paginada a toda a largura da primeira página e que remete para a página 2, onde o acontecimento é desenvolvido com grande pormenor. Na entrada, é registado o facto de se tratar do primeiro regicídio da nossa História, mas, curiosamente, recordando a existência de tentativas de atentados contra a vida de outros monarcas portugueses.
Comparando com outros atentados similares ocorridos no estrangeiro, o Diário de Notícias considera o regicídio “mais grave, uma vez que, em simultâneo, foi assassinado o rei e o seu filho primogénito”. Este jornal evoca também o sofrimento das duas rainhas, a esposa e a mãe de D. Carlos, que, além do mais, como frisa, sofrem “temerosas pelo destino incerto da pátria estremecida”, isto é, receiam as consequências políticas do atentado. Digamos, portanto, que o Diário de Notícias é, a par com O Século, um dos jornais que nos faculta uma das visões mais globais e, em certa medida, mais imparciais, do acontecimento.
O Século, jornal dirigido pelo republicano Sebastião de Magalhães Lima, seguramente o jornal mais popular do país e, por consequência, o diário de maior tiragem, escolhe para noticiar o atentado a manchete “Morte de El-Rei D. Carlos e do Príncipe Real”, precedida do antetítulo “Os últimos acontecimentos” e seguida do subtítulo “O Infante D. Manuel proclamado rei”.
Sem qualquer receio, O Século emite a sua opinião, considerando que “o momento é de imensa gravidade”, e salientando que ninguém pensa em ocultar a situação, porque – e estou a citar – “a nação portuguesa, consciente do perigo, sabedora da verdade, pasma de horror ante essa carnificina, que, num mar de sangue e em nuvens de medonho tiroteio, sacudiu rudemente o trono”.
Ainda na primeira página, e continuando na página 2, O Século publica diversos pormenores do acontecimento, nomeadamente o descarrilamento ocorrido na Casa Branca, a poucos minutos de Lisboa, o desembarque na estação, a recepção à família real e a sessão de cumprimentos, a numerosa assistência, as damas da corte, o Ministério, os primeiros tiros, até à confusão gerada no Terreiro do Paço quando todos tomam consciência de que o rei está morto e o filho está à beira da morte.
Por sua vez, a Ilustração Portuguesa, suplemento semanal ilustrado do jornal O Século, que tem como director Carlos Malheiro Dias, no dia 3, ainda publica as fotografias do rei e da família em Vila Viçosa, a verdejante vila alentejana, abrigada pela serra de Borba, antiga corte da Casa de Bragança, onde D. Carlos gostava de passar o Inverno, sobretudo dedicando-se a uma das suas actividades preferidas – a caça de veados, gamos e javalis, que abundavam na Tapada real. Conta a Ilustração Portuguesa que “nunca como neste mês de Janeiro de 1908, a corte se demorara tanto no palácio de Vila Viçosa, o mesmo donde, em 1640, os conspiradores trouxeram para o trono o então duque D. João II.
Só na edição da semana seguinte, que saiu a 10 de Fevereiro, a Ilustração Portuguesa começa a desfolhar o livro do atentado. A partir daí, dedicou várias edições à publicação de numerosas fotografias da família real em Vila Viçosa, algumas da autoria de D. Carlos, outras de D. Luís Filipe e outras ainda captadas pelo conceituado fotógrafo da época Joshua Benoliel, convidado habitual de D. Carlos para acompanhar as caçadas. A estas fotografias, seguem-se outras do atentado e, finalmente, páginas e páginas cheias de iconografias do regicídio.
5. JORNAIS REPUBLICANOS SEM COMENTÁRIOS
Os jornais assumidamente republicanos, como O Mundo, A Luta, e o Vanguarda, também noticiam o regicídio nas suas primeiras páginas mas utilizam especiais precauções. O Mundo, jornal dirigido por França Borges, um dos mais implacavelmente perseguidos pelo governo da Monarquia, dá conta do acontecimento com o título “Morte de El Rei e do Príncipe Real”, precedido do antetítulo “Atentado contra a família real no Terreiro do Paço, por ocasião do regresso de Vila Viçosa” e, de seguida, limita-se a reproduzir o breve texto publicado, na noite do dia do atentado, pelo jornal regenerador Novidades, abstendo-se de tecer quaisquer comentários, alegando “motivos fáceis de calcular”.
A Luta, jornal de Brito Camacho, dá também uma notícia breve sobre o regicídio e, na edição de dia 3, justifica esse facto com o “desencontro de informações” verificado no dia do atentado. Refere que “a emoção fácil de compreender e que originava tantos e tão opostos boatos, não permitia redigir […] uma notícia”. Assim se percebe que A Luta pretende ganhar tempo para averiguar o que se passou e definir então a sua estratégia de informação.
Já esclarecido e decidido, o jornal abre, no dia seguinte, a sua primeira página com uma afirmação de Ferreira do Amaral, intitulada “Um testemunho insuspeito”, reiterando que, em Portugal, “não existe […] estadista que tenha as condições de excepção exigíveis para poder imprimir, na orientação geral do país, um objectivo definido e certo no que respeita a ramo algum da actividade nacional e muito menos no que se refere à defesa das suas fronteiras e das suas colónias”. Depois, segue com o relato do atentado, da informação da entrega da cidade ao comando militar, das ruas patrulhadas pela força armada, do reconhecimento dos regicidas, da subida ao trono de D. Manuel II, das mais recentes resoluções do Conselho de Ministros, da constituição de um ministério de acalmação, bem como com a reprodução da nota oficiosa publicada, no dia seguinte ao atentado, pelo Diário do Governo. ~
Aliás, esta nota oficiosa, assinada por D. Manuel II, publicada pelo Diário do Governo, é integralmente reproduzida pela maioria dos jornais diários. Apesar de ser uma nota breve, reveste-se de especial relevância, dado que é a primeira manifestação pública de D. Manuel II. Do texto da nota sobressai muito mais do que a manifestação de pesar do jovem rei em face da morte do pai e do irmão. É um texto impregnado da personalidade de João Franco e das políticas da ditadura. Senão vejamos: para além do juramento habitual do novo rei e da garantia que o mesmo juramento seria ratificado, em breve, nas Cortes Gerais da Nação, a nota finaliza com a seguinte afirmação: “[…] declaro que me apraz que os actuais ministros e secretários de Estado continuem o exercício das suas funções”. Assim é transmitida, ao país, uma imagem de normalidade constitucional e de estabilidade governativa. Sabemos, hoje, ilusória.
O jornal Vanguarda, que se assume no seu próprio cabeçalho como republicano independente, noticia o atentado com precaução idêntica à adoptada por O Mundo e por A Luta. Sob a direcção de Magalhães Lima escolhe o título “Morte de D. Carlos e de seu filho D. Luís Filipe” e os subtítulos “A carruagem real é atacada - O infante D. Manuel é ferido - Populares mortos a tiro – Prisões – Proclamação do novo rei – Outros pormenores”. A seguir escreve: “Dada a circunstância anormal em que se encontra a Imprensa, especialmente a Imprensa republicana, e depois do decreto publicado ontem, limitamo-nos a recortar do nosso colega Novidades os pormenores acerca dos extraordinários e sensacionais acontecimentos de ontem”.
6. JORNAIS MONÁRQUICOS APELAM À COMOÇÃO
Como vemos, o Vanguarda refugia-se no decreto assinado em Vila Viçosa - publicado pelo Diário do Governo a 31 de Janeiro e pelos jornais diários a 1 de Fevereiro - para não relatar por palavras próprias o regicídio e, deste modo, não arriscar alguma das sanções previstas na nova lei franquista. Recordemos que este decreto acaba com as imunidades parlamentares e prevê a deportação para uma das províncias ultramarinas dos que atentem contra a segurança do Estado, a tranquilidade pública e os interesses gerais da nação. Ou seja, de todos os que abrissem a boca ou escrevessem nos jornais algo com que a ditadura não concordasse. Mais, o «decreto do desterro» - como ficará conhecido - contempla que as condenações sejam decididas pelo governo sem qualquer intervenção do poder judicial.
Os receios sentidos e cautelas exigidas aos jornais republicanos vigiados à lupa pela ditadura franquista, não fazem, no entanto, sentido para os jornais do regime como o Diário Ilustrado, regenerador liberal, franquista, dirigido por Álvaro Pinheiro Chagas. Assim, o Diário Ilustrado enche a sua primeira página com aquilo que denomina como “Infame atentado”, seguido do título “Assassinato de sua majestade El Rei D. Carlos e de Sua Alteza o Príncipe Real”, incluindo ainda o subtítulo “Proclamação de El Rei D. Manuel”. O diário franquista escreve, na primeira página, um longo texto em que considera este atentado como “um dos mais hediondos e infames atentados de que reza a história de todos os povos”.
Seguidamente, o Diário Ilustrado elucida o seu público, enfatizando que “o momento é para chorar o rei benigno, valoroso, amigo, apaixonado da sua pátria e do seu povo, de cujas glórias fazia um culto, e cujas prosperidades eram do seu espírito o constante e supremo cuidado”. Quanto ao príncipe D. Luís Filipe, retrata-o como uma “pobre e inocente vítima de uma fúria canibalesca, […] que ainda antes de provar as suas aptidões de reinante foi imolado aos instintos abomináveis de criaturas que uma aberração da natureza colocou entre a espécie humana”.
Evocando o sentimento de dor da rainha enquanto viúva e mãe, provavelmente para despertar a compaixão das mulheres portuguesas, o Diário Ilustrado frisa que o momento “se é de inenarrável dor, é também de molde a exacerbar em todos o sentimento sempre vivo do mais dedicado patriotismo”. Em resumo, conclui que D. Manuel “tem em volta do seu trono a dedicação, o amor e o apoio decidido de todos os portugueses dignos de tal nome”.
A Nação, jornal monárquico miguelista, dirigido por Franco Monteiro, sabe que, num país como Portugal, no início do século XX, pode mobilizar os populares, pelo que escolhe um título apelativo: “Horroroso crime”, ao qual acrescenta um texto à dimensão de toda a página, no qual refere que “nos anais da História portuguesa escreveu-se uma página nova nas suas consequências e única nos seus efeitos tão nefastos como selvagens”. Num gesto de apelo à união dos portugueses, sublinha: “Estamos todos de luto. A tragédia de sábado feriu-nos a todos. Nem há já arraiais políticos: há homens, há corações. Não há a dor de uma família augusta: há o sentimento de uma nacionalidade inteira”.
CONCLUSÃO: INFORMAÇÃO IDEOLOGIZADA
Em suma, as manchetes e as primeiras páginas do regicídio aqui analisadas, à semelhança de tantas outras manchetes e primeiras páginas publicadas em dezenas de jornais diários no domingo 2 de Fevereiro (1908), desnudam a História de Portugal deste período diante dos nossos olhos. A Imprensa, apenas a preto e branco, com muito reduzido recurso a fotografias ou iconografias, revela-se, ainda assim, diante de nós, como extraordinariamente poderosa.
É uma Imprensa que relata o acontecimento, transmitindo as informações com assumida parcialidade, omitindo, por vezes, algumas informações; dando, outras vezes, opinião sobre o acontecimento e suas consequências; enfim, é uma Imprensa que apresenta uma narrativa que visa influenciar a formação da opinião pública - uma opinião pública que, à época, é, naturalmente, muito restrita.
É, também, uma Imprensa que utiliza uma narrativa denunciadora, por um lado, da existência de uma censura institucionalizada e de um controlo dos jornais, mas, por outro lado, reveladora da persistência de uma luta militante travada em nome de interesses políticos, de ambições pessoais e da liberdade de Imprensa.
A linguagem dos jornais diários portugueses evidencia que a Imprensa está ainda, nesta época, ligada à política. Ao lado dos comícios públicos, como sustenta José Tengarrinha (História da Imprensa Periódica Portuguesa: 240) é a Imprensa “a tribuna mais incisiva e de mais profundo efeito, preparando os espíritos para o movimento que eclodiria vitoriosamente em 5 de Outubro”.
A informação é, portanto, assumidamente ideologizada. A linguagem maniqueísta, a escrita adjectivada, a opinião e informação misturadas no mesmo texto, a forma notória como se expõem os adversários políticos de cada jornal, assim como a utilização de fontes anónimas concordantes com a linha editorial do jornal e a concessão do direito à palavra exclusivamente a personalidades identificadas com o pensamento do jornal, isto é, o conjunto de elementos que João Figueira (Os Jornais como Actores Políticos: 215) encontra nos jornais portugueses no período que se seguiu ao 25 de Abril de 1974, caracteriza na perfeição o jornalismo existente aquando do regicídio.
BIBLIOGRAFIA CITADA LEMOS, Mário Matos e, Jornais Diários Portugueses do Século XX. Um Dicionário, Ariadne, Coimbra, 2007.
FIGUEIRA, João, Os Jornais como actores políticos, MinervaCoimbra, Coimbra, 2007.
FERENCZI, Thomas, L´Invention du Journalisme en France, Petite Bibliothèque Payot, Paris, 1996.
TENGARRINHA, José, História da Imprensa Periódica Portuguesa, Caminho, Lisboa, 1989.
TENGARRINHA, José, Imprensa e Opinião Pública, MinervaCoimbra, Coimbra, 2007.