sexta-feira, dezembro 07, 2007

A Grande Guerra e a falência da República

Por Noémia Malva Novais
INTRODUÇÃO
Se considerarmos, como Fernando Rosas, que o século XX português se estrutura, no que se refere à sua história política, em três ciclos fundamentais – o longo ciclo da crise final do sistema liberal-oligárquico (1820-1926), o ciclo do autoritarismo (1926-1974) e o ciclo da democracia (após 1974), situar-nos-emos, para os objectivos deste trabalho, no primeiro dos ciclos, especificamente no período da I República, e deter-nos-emos, especialmente, na problemática da Grande Guerra, porquanto estamos em crer que a intervenção de Portugal na guerra, e o seu desenlace, definido na Conferência da Paz, foram decisivos para a falência da República.
A República nascera em 1910 como uma espécie de ideia convertida em sonho, com “estranhas ressonâncias na alma do povo”, que lhe augurava “um futuro de grandeza nacional, cimentado nos princípios da liberdade e da democracia”. Bastou que em Lisboa se proclamasse a República para que quase todo o país aderisse. Como previra João Chagas, “na província, a República foi “implantada por telégrafo”.
Herdeira da cultura política resultante do Ultimatum (1890), caracterizada essencialmente por uma espécie de medição de forças, primeiro entre monárquicos e republicanos, depois entre facções republicanas, a República acabou por se tornar num dos mais longos períodos de instabilidade política e social da história contemporânea de Portugal. Em 1914, quando a Primeira Guerra Mundial eclodiu, a República viveu um momento difícil, que proporcionou à opinião pública da época – uma opinião pública restrita, evidentemente – o conhecimento das lutas político-partidárias dos principais intervenientes na discussão acerca do futuro próximo de Portugal.
Na verdade, a deflagração da guerra surpreendeu todos. O efeito da surpresa não foi, no entanto, o mesmo em todos os sectores da vida nacional. As principais forças políticas portuguesas tiveram reacções diferentes face ao conflito armado. Intervencionistas e anti-intervencionistas defrontaram-se no Parlamento e na imprensa, procurando influenciar a opinião pública face à guerra em que, dois anos mais tarde, Portugal haveria de participar activamente.
A questão de intervir ou não na guerra foi, assim, “o grande pomo da discórdia da primeira República”. Existiam duas correntes de opinião: os intervencionistas (guerristas), apoiantes da entrada imediata de Portugal na guerra, uns partidários dos aliados, outros da Alemanha (estes “uma ínfima minoria, sem qualquer peso no país: era o caso de alguns monárquicos”); e os anti-intervencionistas (antiguerristas), defensores da não intervenção do país no conflito armado.Para os primeiros, a participação na guerra ao lado da Inglaterra “reanimaria a velha aliança e quebraria o isolamento de Portugal”. Os principais defensores desta orientação eram os republicanos democráticos que constituíam a maior força política do país e dominavam o aparelho de Estado. Os anti-intervencionistas defensores da neutralidade, eram, sobretudo, os monárquicos, os republicanos unionistas, alguns sectores do exército e a maioria do país “que se opunha naturalmente à participação num conflito cujas causas lhe escapavam”.
A estratégia intervencionista “assumia a defesa de interesses nacionais e objectivos de ordem externa […] como a garantia da integridade colonial em África, a soberania nacional face à Espanha e a conquista do prestígio internacional do regime”. Mas “perseguia igualmente objectivos de ordem interna” e aproveitou a conjuntura internacional criada pela guerra, acreditando que “só uma ameaça externa e uma intervenção militar na guerra em larga escala poderia justificar o sacrifício de todas as fracturas e facções internas em função do interesse e da unidade nacional”.
Desde o início da guerra, os intervencionistas tiveram, no entanto, de enfrentar “uma corrente tenaz na sua oposição e uma enorme maioria do país que não podia compreender o sacrifício que lhe era pedido de acudir aos campos de batalha”. O seu argumento de base era o de que no intervencionismo “ia denunciar-se uma acção unilateral, que nem o conteúdo específico da aliança inglesa, nem a vontade expressa de Londres reclamavam”.
Perante esta demonstração da instabilidade que se instalou no país e que impediu a coesão nacional necessária perante as dificuldades decorrentes da guerra, a situação interna e externa de Portugal acabou por ser qualificada como de decadência ou de decomposição. Os países mais fortes da Europa, nomeadamente a Inglaterra, a França e a Alemanha, mediam a agonia de Portugal como mediram a da Turquia. Do lado espanhol, aguardava-se que, perdidas as colónias, Portugal perdesse a sua razão de ser, a sua categoria de estado soberano, para a Espanha se poder apresentar como a legítima herdeira do espaço geográfico português. Até já se tinham estudado os argumentos: dir-se-ia que Portugal encontraria na união com o país vizinho a sua salvação.
Mas, na realidade, a situação de Portugal interessava também a Inglaterra. A Espanha, consciente do interesse inglês, moveu-se sempre em estreita ligação com a Inglaterra. De modo que, durante a guerra, a Espanha, que se declarara neutral desde o início, arvorando-se em eventual medianeira na hora da paz, continuou o debate acerca do futuro da beligerante República portuguesa. Nesta fase, o problema da decadência da República ganhou especial interesse para os espanhóis partidários da Alemanha, porquanto Portugal decidira participar na guerra ao lado dos aliados. Se os aliados perdessem a guerra, Portugal perderia as colónias. A Espanha acreditava que, sem o império colonial, as finanças arruinadas pelo esforço belicista e a população nas ruas a exigir melhores condições de vida, Portugal desintegrar-se-ia e a Alemanha seria uma aliada indiscutível da Espanha na hora da união ibérica.Esta campanha iberista produziu uma intensa reacção em Portugal, reanimando o espectro do perigo espanhol, imediatamente aproveitado para fins claramente partidários. Os monárquicos acusaram que os desvarios da República alentavam, de novo, a questão ibérica, ao mesmo tempo que defenderam que a monarquia era a solução lógica para a falência do regime vigente. Os republicanos, sobretudo os democráticos, fizeram eco na imprensa republicana da sua oposição à ditadura de Pimenta de Castro (1915), considerando que antes dela as nossas relações internacionais eram as melhores, razão pela qual a ameaça espanhola estava, pelo menos, calada.
As intenções espanholas, devidamente exploradas por republicanos e monárquicos, despertaram um clima de temor entre a opinião pública portuguesa. Este temor só acalmou depois da revolução de 14 de Maio de 1915, mesmo assim, nunca foi apagado. Mas será que Portugal corria um risco efectivo de perda da sua independência? A opinião pública aceitava a ameaça. Os políticos sentiam o perigo, exploravam-no habilmente e acabaram por apresentar a participação de Portugal na guerra ao lado da Inglaterra, no cumprimento da velha aliança, como a única garantia de independência.
Na verdade, a conjuntura bélica acabou por conduzir os governos dos dois países ibéricos à defesa da necessidade de manutenção de relações amistosas. Portugal decidiu envolver-se na Grande Guerra, mobilizou cerca de 100 mil homens, dos quais perdeu cerca de 10 mil e viu regressar alguns milhares de feridos. A Grande Guerra gerou uma catástrofe nacional: os custos económicos e sociais foram muito superiores à capacidade nacional; os objectivos intervencionistas foram gorados na totalidade; a unidade nacional não foi alcançada e a instabilidade política aumentou de intensidade.
É, por isso, que os estudos produzidos pela historiografia portuguesa contemporânea concordam, de um modo geral, em que a participação de Portugal na Primeira Guerra Mundial, decorrida entre 1914 e 1918, foi o golpe final na República. Contudo, há algumas vozes discordantes. O historiador António Reis, por exemplo, escreveu recentemente a sua posição relativa a esta matéria, concluindo que “a crise desencadeada pela participação de Portugal na Grande Guerra não foi uma crise fatal”. Ora, na verdade, no final da guerra, assistiu-se ao “súbito reforço do campo conservador e autoritário, com o trauma nunca superado do acidentalmente breve consulado sidonista”, viveram-se graves dificuldades económicas e financeiras, períodos de grande agitação social, intensificação da instabilidade governativa, circulando, na opinião pública, uma espécie de pensamentos em voz alta, sinónimos de uma certa tentação militarista.
Todos estes elementos caracterizadores da crise final da I República parecem enraizar-se na polémica e contestada decisão dos intervencionistas de conduzir Portugal ao palco europeu da Grande Guerra. O que tentaremos verificar, ao longo deste trabalho, é se existe mesmo uma relação de causa – efeito entre a intervenção de Portugal na guerra e a falência da República. No fundo, procuraremos aferir se a não intervenção no conflito armado teria salvo o regime republicano e descortinar até que ponto poderão existir, na política interna portuguesa, outros factores explicativos da queda da República. Para o efeito, cruzaremos os resultados das investigações produzidas pelos mais conceituados historiadores da História Contemporânea de Portugal com as conclusões da nossa própria investigação documental em sede do Arquivo Histórico-Diplomático do Ministério dos Negócios Estrangeiros.
1. A INSTABILIDADE POLÍTICA
No final da Guerra, o ambiente de instabilidade política que assolou toda a Europa, atingiu Portugal de forma dramática. Na verdade, depois da implantação da República, foi a Grande Guerra que traçou “a marca mais profunda na sociedade portuguesa” da segunda década do século XX. Foi devido às dificuldades resultantes da intervenção portuguesa no teatro europeu das operações bélicas que foi possível o golpe de Sidónio Pais (5 de Dezembro de 1917) que, apesar de se ter traduzido num breve consulado (até 18 de Dezembro de 1918), abalou as instituições republicano-liberais, inaugurando uma época de instabilidade governativa sem precedentes (14 governos entre Maio de 1919 e Janeiro de 1922).
É claro que podemos recordar o falhanço da União Sagrada, que já tornara claro que nem um perigo comum era suficiente para unir os portugueses, e, nunca é demais lembrar a derrota da solução democrática de Afonso Costa, bem como o isolamento a que foi remetido, alegadamente devido à sua ânsia de levar Portugal à guerra. Qualquer destas situações, já evidenciara a existência de um clima conspirativo que minava a política da República. No entanto, o facto das Forças Armadas, que os intervencionistas afirmavam pretender dignificar com a intervenção na guerra, se terem dividido e terem desautorizado o poder político civil e auxiliado o golpe e a subida ao poder de Sidónio Pais, comprova que a guerra condicionou a vida do país.
Podemos reflectir que a subida ao poder de Sidónio Pais não provocou qualquer alteração da situação diplomática de Portugal, no entanto, não podemos deixar de frisar que o governo sidonista não se livrou das suspeitas internacionais de germanofilismo e iniciou “um novo rumo para a política de guerra, em particular no que respeita à vertente militar”.
1.1 A política de guerra sidonista
Logo em Janeiro (1918), Sidónio Pais assinou uma nova convenção com a Inglaterra, através da qual alterou a composição do Corpo Expedicionário Português (CEP), reduzindo-o a uma única Divisão, tacticamente dependente do governo inglês. Se “era grande o significado militar desta alteração, o significado político era ainda maior”. Para os militares do CEP, mais grave que a redução dos efectivos era a questão do roulement. Na prática, esta decisão de Sidónio Pais, para a qual contribuiu o corte de transportes pela Inglaterra, significou que deixou de se fazer a rendição do contingente e o reforço das tropas. Daí que seja vulgarmente aceite que a participação portuguesa na Grande Guerra foi “particularmente penosa no período sidonista. Foi neste período que Portugal sofreu as suas humilhações de guerra”.
As consequências desta política de guerra não se fizeram esperar. No campo de batalha, “o desgaste físico provocado por longos meses nas trincheiras, o corte das licenças, a dureza do Inverno, a crescente intensidade e frequência dos ataques inimigos e a falta de reforços, foram agravando o moral das tropas portuguesas”. Neste contexto, grassou a indisciplina e a deserção, de que resultou a condenação de quase 400 militares do CEP em 1918.
A situação das tropas portuguesas no front, a que não eram alheios os alemães, degradou-se ainda mais, a partir de Março de 1918, com a intensificação dos ataques inimigos. As deficientes condições do CEP eram tão evidentes que a Inglaterra decidiu retirá-lo da frente. A rendição estava marcada para o dia 9 de Abril. Porém, a intervenção da Inglaterra já não foi necessária. Os alemães bombardearam as tropas portuguesas, em La Lys, nesse mesmo dia 9, destroçando o exército português.
Portugal vivia sob o efeito das consequências directas desta política de guerra quando Sidónio Pais foi assassinado. O país mergulhou, imediatamente, numa profunda crise política. De acordo com o sistema presidencialista de Sidónio Pais, o Presidente da República deveria ser eleito por sufrágio universal e por um período de quatro anos, mas o Presidente da República Canto e Castro fora eleito pelo Parlamento e para cumprir o que restava do mandato de Bernardino Machado, que fora demitido aquando do golpe sidonista. Tratara-se de uma situação atípica que motivara mesmo João Chagas a apelidar Canto e Castro de “usurpador”.
Os republicanos capitalizaram rapidamente o apoio de muitos veteranos que se voltaram contra a ditadura sidonista. “Afinal haviam sido traídos pelos monárquicos que apoiaram os regimentos militares que se recusaram a partir para França”. Perante este cenário, o ano de 1919 começou, em Portugal, a “ferro e fogo”. Sidónio Pais confiara postos militares e cargos civis a monárquicos que, neste contexto, viram chegada a oportunidade para darem o salto definitivo e se apoderarem do poder pela força. Comandados por Paiva Couceiro, concretizaram o sonho que acalentavam desde 1910: restaurar a Monarquia. Como Lisboa lhes levantava algumas dificuldades, foram restaurar a Monarquia ao Porto (19 de Janeiro de 1919), onde a conspiração monárquica reinava desde o golpe de Sidónio Pais.
Ora, se a política de guerra sidonista já tinha produzido os mais pesados estragos, a morte do ditador, ao favorecer as intenções couceiristas, agravou a crise em que o país mergulhara, lançando-o numa profunda guerra civil.
Aos monárquicos associaram-se, então, alguns militares e mesmo alguns sidonistas que defendiam uma solução de tipo militar para o governo do país, pelo menos até ao fim dos trabalhos da Conferência da Paz que decorria em Paris. Na realidade, uns e outros não pretendiam mais do que impedir o regresso previsível dos democráticos ao poder. Contudo, a maioria dos sidonistas não se revia no projecto realista, pelo que não se associou aos monárquicos.
Por seu lado, o exército regressado dos campos de batalha, embora se encontrasse fraccionado a nível político, acabou por apoiar, maioritariamente, o regime republicano. Os militares não aceitavam, de modo nenhum, o regresso ao poder dos monárquicos que, como vimos anteriormente, os haviam traído. Os monárquicos acabaram por ser derrotados em Monsanto.
1.2 A ‘incompetência’ das direitas no pós-sidonismo
Entretanto, já sem a ameaça monárquica, Portugal tinha de assumir a responsabilidade resultante da participação na guerra. Foi, por isso, que José Relvas constituiu um governo que, além de pretender apaziguar a política interna, almejava participar com sucesso nas negociações internacionais decorridas na Conferência da Paz.
A situação resultante da participação portuguesa na guerra dominou as preocupações de José Relvas que constituiu um governo de salvação republicana, integrando sidonistas moderados, socialistas, democráticos, unionistas, evolucionistas e independentes. Foi seu objectivo fortalecer a posição internacional do governo e alargar a base social de apoio da República na luta contra os monárquicos. Desta vez, a República ainda contou com o apoio da rua e com o beneplácito da direita conservadora que, perante o desaparecimento de Sidónio Pais, recuou na sua investida contra o regime republicano-liberal.
Na verdade, as direitas que, nas “crises cruciais do liberalismo posteriores à implantação da República”, como esta crise da Grande Guerra, “confluem e em certa medida confundem-se num equilíbrio estável para, num primeiro momento, conspirar e derrubar o regime”, dividem-se quando se trata de constituir um projecto comum, bem como de “estabelecer as bases doutrinárias e as orientações políticas do novo poder”. Foi, por isso, que, como acentua Fernando Rosas, fracassou a experiência sidonista. As direitas não sabiam ainda como deveriam agir para conservar o poder. Souberam dividir os sidonistas e os militares, no sentido de ficarem em maioria, mas, como não tinham a experiência da sua própria unidade, não conseguiram conservar o poder.
Os democráticos aproveitaram este contexto de derrota da tentativa de restauração monárquica, de desagregação do sidonismo e de divisão das direitas para recuperarem alguma popularidade, que lhes permitiu regressar ao poder em Maio (1919). Durante algum tempo, acreditou-se ainda na capacidade de regeneração do regime. Porém, a Grande Guerra legara uma herança demasiado pesada. Para além da manutenção do império colonial, os outros objectivos intervencionistas falharam todos, e a Conferência da Paz saldou-se por um insuficiente “reconhecimento internacional do jovem regime republicano português – pior tratado do que a Espanha não beligerante, como amargamente se queixou Afonso Costa, e privado das adequadas e justas compensações financeiras”.
1.3 A emergência da esquerda republicana
A instabilidade governativa continuou a ser uma constante no pós-guerra, tendo mesmo aumentado de intensidade. Aliás, esta instabilidade apresenta características diferentes da instabilidade existente no período anterior ao conflito bélico. Enquanto, no período anterior à Grande Guerra, a instabilidade dos governos era, muitas vezes, criada, pelo problema do “acesso político”, no pós-guerra, a política económica tornou-se um factor decisivo na governação. Neste período, os grupos de interesses já desempenhavam “um papel relevante na formação e na queda de governos”. Evidentemente que o facto de, no pós-guerra, terem desaparecido, do sistema partidário, alguns dos seus líderes históricos - Afonso Costa, António José de Almeida e Brito Camacho, respectivamente chefes políticos dos democráticos, evolucionistas e unionistas – também fragilizou os governos.
Para esta fragilidade governativa contribuiu ainda o Partido Democrático que, no rescaldo da Grande Guerra, decidiu assumir-se como “partido situacionista por excelência, centrista, conservador”, acabando por sofrer dissenções à esquerda e à direita. Desta fragmentação, emergiu, “pela primeira vez, o que se pode considerar uma esquerda republicana”, constituída por um conjunto de grupos políticos, como o Grupo Popular, o Partido Radical, a Esquerda Democrática, os intelectuais da Seara Nova, “que se reconhecem num programa político, económico e financeiro razoavelmente coerente”.
Através de uma aliança – instável, é certo – com os partidos ou os sindicatos operários e do apoio militar da Marinha e da GNR, esta esquerda conseguiu passar “esparsa e caoticamente pelo poder até à «noite sangrenta» de 19 de Outubro de 1921”, e, como acentua Fernando Rosas, entre Dezembro de 1923 e Fevereiro de 1925, nos ministérios de Álvaro de Castro, Rodrigues Gaspar e José Domingues dos Santos, tentou “levar à prática a sua política económica e financeira de resposta à crise que o país atravessava”.
Esta esquerda pretendia atingir o equilíbrio orçamental e foi mesmo capaz de adoptar medidas nesse sentido, porém, “o reencontro do republicanismo com um projecto nacional de governação à esquerda, por contraste com o centrismo situacionista dos «bonzos» do PRP que dominava a vida política ou com a indisfarçada conspiração das direitas autoritárias, padecia de debilidades graves que se demonstraram inultrapassáveis”. Estes grupos de esquerda não conseguiram ser uma força política forte, coesa e com uma representação parlamentar capaz de lhes permitir a autonomia necessária para governar com estabilidade. Neste contexto, a maioria parlamentar do PRP, como escreve Fernando Rosas, “deixava-os governar quando não lhe convinha fazê-lo, mas derrubava-os mal entendia ser a altura de regressar ao poder”. Foi assim que o PRP derrubou o governo «canhoto» em Fevereiro de 1925 e, daí em diante, iniciou uma política de destruição da sua obra política e financeira, fazendo cedências aos meios conservadores, acreditando que, desse modo, conseguiria impedir a concretização do golpe militar que se sabia estar em preparação. Com esta atitude, acabou, no entanto, por abreviar o caminho aos golpistas.
2. UMA ECONOMIA ARCAICA
A esta instabilidade política correspondiam estruturas económicas arcaicas, “cuja solidez só pouco foi abalada e só pouco podia ser abalada” devido aos interesses estabelecidos. Era assim na organização da propriedade, por exemplo; era também assim na economia. Na primeira, os pequenos proprietários desconfiavam do emparcelamento das terras e os latifundiários recusavam qualquer medida que lhes diminuísse a propriedade. Na segunda, “continuava a insistir-se nos produtos tradicionais – os cereais, o vinho, o azeite e a cortiça – com técnicas ultrapassadas e com formas de comercialização já de há muito exploradas”.
Apesar da renovação causada pela guerra, a verdade é que o comércio interno continuou a assentar em formas tradicionais pouco desenvolvidas, como as pequenas lojas, os mercados e as feiras, travando “grandes concentrações de capital e grandes complexos comerciais”. Os pequenos comerciantes e os pequenos industriais, a par com os pequenos proprietários, “dominavam numericamente o espaço económico da época”, constituindo uma força conservadora, flutuante em termos políticos, decidida a apoiar quem lhes garantisse mais lucro, e, claro, uma eventual tranquilidade.
Com a Grande Guerra, e a decisão de Portugal de intervir no teatro das operações bélicas, veio um difícil rescaldo. No entanto, devemos assinalar que a indústria conheceu “um surto marcado, apesar das dificuldades causadas pela falta de transportes, subida no custo das matérias-primas e reivindicações sociais”. Em certa medida, a indústria aproveitou algumas das dificuldades existentes, como a inflação e a instabilidade política, para aumentar os investimentos e melhorar a concorrência com algumas indústrias estrangeiras. Foi assim na indústria conserveira, na têxtil, na química e nos cimentos.
No entanto, a indústria nacional não se desenvolveu através da concentração em grandes unidades fabris, mas através da disseminação de pequenas unidades industriais. Era uma indústria pobre “em capital e em apetrechamento moderno”, resultante de “numerosas mas modestas iniciativas de uma burguesia individualista e resistente a métodos modernos de concentração de capital”, pelo que, a crise económica do pós-guerra, sentida em Portugal até 1925, abalou decisivamente algumas destas indústrias.
Também o comércio interno conheceu uma transformação a partir da Grande Guerra. Só no ano de 1917 foram criadas 282 novas sociedades comerciais, entre as quais cinco companhias de seguros, e, entre 1917-1920, foram constituídos onze bancos, o que evidencia a afluência de capitais. Mas, quando rebentou a crise internacional de 1920-1922, a falência atingiu dezenas de estabelecimentos. Como, em Portugal, a crise económica se alastrou por mais três anos, as falências sucederam-se, deixando muitos na miséria.Por seu lado, o comércio com o estrangeiro, girava, em 1914, graças ao novo tratado comercial luso-britânico, quase totalmente em torno da Inglaterra e das facilidades, nomeadamente de transporte, concedidas pela velha aliada. Como a eclosão da guerra e o alinhamento de Portugal com a Inglaterra obrigaram a um corte de relações comerciais com a Alemanha, a Inglaterra, os Estados Unidos da América e a Espanha apoderaram-se do mercado português. Assim, Portugal “sofreu uma redução drástica no seu comércio externo”, vendo-se obrigado a explorar os parcos recursos internos e a fomentar o intercâmbio com as colónias.
2.1 Uma crise económica catastrófica
No final da guerra, em 1919, em termos de importações, Portugal estava dependente da Inglaterra, dos Estados Unidos da América e da Espanha, donde importava mais de 70 por cento dos produtos, e, para agravar a situação, em termos de exportações, tinha perdido definitivamente o mercado brasileiro que passou a ser controlado pelos Estados Unidos da América. A dependência da Inglaterra era tanto mais séria quanto se sabe que a maior parte dos transportes, tanto de importações como de exportações, mesmo para as colónias e para o Brasil, eram assegurados por este país.
Em 1925, vésperas do golpe militar que derrubou a I República, Portugal agravara a dependência dos mercados europeus, donde provinham cerca de 65 por cento das importações e para onde seguiam cerca de 60 por cento das exportações. A Inglaterra recuperara alguma da ascendência sobre a economia do país. O preço pago pela participação na Grande Guerra fora, efectivamente, demasiado elevado. Mas teria sido fatal para o jovem regime republicano? António Reis considera que a crise económica desencadeada pela participação de Portugal na Grande Guerra “não foi uma crise fatal”, porém, reconhece que essa crise apresenta todos “os ingredientes habitualmente presentes nesse género de crises”, embora também defenda que esses ingredientes se encontram em doses menores do que as encontradas noutros países beligerantes.
Ora, na realidade, entendemos que essas doses, embora menores, foram maiores do que Portugal poderia suportar. Logo durante a guerra, quando se verificou uma expansão do comércio e da indústria, registaram-se também perturbações económicas e sociais graves, provocadas pela escassez de géneros alimentares, uma vez que o país “viveu a crise de escassez da Primeira Guerra Mundial” que resultou da paralisação dos transportes comerciais internacionais e da consequente quebra de fornecimentos, nomeadamente de combustíveis e de matérias-primas; pelo aumento de preços e diminuição dos salários - que diminuiu, progressivamente, o poder de compra das classes médias, do funcionalismo público e das próprias Forças Armadas; pela inflação e pelas tentativas de dirigismo económico do Estado.
Mais, as despesas resultantes da participação na guerra subiram de dia para dia, atingindo o auge nos anos de 1917-1918 e 1918-1919. Nem o aumento das receitas públicas, verificado em 1918-1919, conseguiu fazer face às despesas acrescidas pelo conflito. O descalabro dos orçamentos e das contas públicas foi uma constante, agravada ainda mais nos anos de 1920-1921 e 1922-1923, em que se verificou uma diminuição das receitas do Estado devido, essencialmente, à desvalorização do escudo que diminuiu vinte vezes de valor até 1924.
Por outro lado, a dívida de guerra de Portugal à Inglaterra era exorbitante: aproximadamente 25 milhões de libras (quase o equivalente do PIB). As pretensões de Portugal, bem como da generalidade dos aliados, de ver a dívida paga pela Alemanha, revelaram-se infrutíferas, dado que a Alemanha se mostrava “insolvente ou pagava com irregularidade”, até que, com a crise económica dos finais da década de 20, a Alemanha deu por suspensas em definitivo as reparações a que fora obrigada pelo Tratado de Versalhes.
2.2 Uma economia fechada
Nem o desenvolvimento da economia nacional verificado no final da guerra, designadamente entre 1919-1920, foi capaz de resolver a situação económica do país. O comércio do vinho, da cortiça e das conservas de sardinha expandiu-se, as importações aumentaram, constituíram-se onze novos bancos e numerosas e diversificadas sociedades comerciais, porém, o boom acabou e uma nova crise económica internacional (a de 1920-1922) abateu-se sobre Portugal, teimando em persistir até 1925. Esta crise, caracterizada, essencialmente, por “uma inflação monetária incontrolável e uma especulação desenfreada” acabou por determinar a falência de catorze bancos e diversas casas bancárias.
A balança comercial, embora com altos e baixos, evidenciou um constante deficit, com as importações a excederem “geralmente as exportações em mais do dobro”. A inflação continuou a agravar-se em consequência dos deficits públicos e do seu financiamento com recurso a empréstimos do Banco de Portugal, que obrigaram a um sempre penalizante aumento de emissão monetária. E as transferências de capitais para fora do país acentuaram-se, calculando-se, em meados da década de vinte, em 70 milhões de libras. Esta fuga de capitais depauperou o Estado que, no final da I República, tinha uma das mais baixas reservas de ouro da Europa.
Não admira, assim, que, no final da Grande Guerra, do ponto de vista político, a situação interna e externa de Portugal tenha sido observada pelas principais potências estrangeiras como uma situação de decadência ou de decomposição – recordemos os 14 ministérios que governaram Portugal entre Maio de 1919 e Janeiro de 1922; lembremos que a esta instabilidade governativa se associou a indisciplina dentro dos partidos republicados que viviam cisões constantes, tornando imprevisível a sustentação parlamentar dos governos; não esqueçamos que, do lado espanhol, continuava a sonhar-se com o dia em que Portugal perderia a sua categoria de Estado soberano e a Espanha se apresentaria como a legítima herdeira do espaço geográfico português (era um sonho que ganhara nova força no período sidonista, porquanto Sidónio Pais contemplara “seriamente o projecto de uma aliança com o país vizinho”) - e que, do ponto de vista financeiro, a situação de Portugal tenha sido qualificada como catastrófica.
Evidentemente que a República herdou um país de cofres vazios e, devido à instabilidade política e governativa, não teve tempo para os voltar a encher. Contudo, a Grande Guerra tornou inevitável que a situação do país se agravasse. Só a partir de 1924, Portugal conseguiu começar a recuperar o nível de produção anterior à guerra, muito embora essa recuperação tenha ficado a dever-se aos efeitos da reforma fiscal de 1922 e do progressivo “controlo das contas públicas” realizado pelo então ministro das Finanças Álvaro de Castro.
Neste período, uma vez que a participação na guerra confirmou a posse do império colonial, Portugal começou a desenhar um novo modelo de espaço económico nacional à escala do império, fechando a economia do país sobre si mesma. Esta lógica de construção de um novo espaço económico nacional à escala do império, associada à retracção do comércio internacional, contribuiu, de forma decisiva, para a ideia da necessidade de um governo forte, que começou, por esta altura, a circular entre a opinião pública e que apresentou o exército como a solução para a crise que aprisionara Portugal.
3. A CRISE SOCIAL E DE VALORES Se, na realidade, as mutações políticas e económicas resultantes da conjuntura da Grande Guerra explicam a queda da I República, a verdade é que esses factores foram ainda auxiliados pela agitação social que afectou a vida da República desde o início mas que se agudizou durante e após a guerra. A este nível, devemos analisar duas ordens de razões: o esvaziamento dos valores e a questão operária.
Em relação ao esvaziamento dos valores, podemos considerar a insensibilidade à violência, a proliferação de ódios e a crise dos valores morais tradicionais, todos fomentados pela Grande Guerra. Basta recordarmos os acontecimentos da «noite sangrenta» (19 de Outubro de 1921), ocorridos no rescaldo do vitorioso golpe militar radical contra o governo do Partido Liberal de António Granjo, para constatarmos que a violência entrara na ordem do dia, atingindo um ponto até então inimaginável.
O facto de se aceitar que a conspiração da «noite sangrenta» deverá ter tido várias cabeças e não deve ter resultado de um plano geral mas de uma série de ajustes de contas, evidencia que a instabilidade política e a crise económica provocadas pelos quatro anos de guerra, e todo o sangue derramado pelos milhares de mortos e outros tantos milhares de feridos, tinham criado uma atmosfera de impunidade e uma enorme insensibilidade à violência. Conspirava-se na maior promiscuidade, pelo que já ninguém estranhava. Contudo, a morte de conhecidos fundadores da República (António Granjo, José Carlos da Maia e Machado Santos), bem como de cidadãos quase anónimos (como o motorista Gentil e o coronel Botelho de Vasconcelos) na «noite sangrenta» gerou uma “vaga de repulsa colectiva” no país.
Ninguém conseguia entender a crueldade destas mortes, pelo que imediatamente surgiu um clima de comoção nacional que obrigou as elites republicanas e a opinião pública a tomarem consciência da necessidade de criação de condições de estabilidade governativa. Por isso, foram convocadas eleições legislativas antecipadas (em Janeiro de 1922), que conferiram a vitória aos democráticos, então chefiados por António Maria da Silva.
Esta conjuntura política, económica e social, viabilizou o início do saneamento das finanças do Estado e do controlo da inflação, deixando pairar sobre a República, ainda que por pouco tempo, uma última réstia de esperança. É por isso que entendemos que os acontecimentos da «noite sangrenta», que, efectivamente, foram aproveitados para criar o clima favorável à queda do regime republicano, num primeiro momento, funcionaram como um aviso às classes dirigentes do país. António Reis partilha deste nosso ponto de vista, ao defender que a «noite sangrenta» funcionou como “um sinal de alarme”, criando “as condições para que os dirigentes republicanos arrepiem caminho e enveredem por um período de relativa estabilidade governativa”, que estará na base da sobrevivência da República durante mais cinco anos.
3.1 O descontentamento da classe operária
Os trágicos acontecimentos da «noite sangrenta», na medida em que constituíram uma espécie de aviso à ‘navegação’, poderão também ter contribuído para uma certa desmotivação da classe operária para o protesto social. Isto porque, até então, o descontentamento da classe operária era o maior possível. Os sucessivos governos da República não tinham feito uma política económica e social capaz de dar provimento às exigências da classe operária e de responder às pressões da oligarquia financeira, pelo que a ameaça da classe operária se intensificara entre 1919 e 1921.
Para tranquilizar “os meios burgueses face ao crescendo da agitação social operária, os governos republicanos envolvem-se numa quase guerra permanente contra o movimento operário que acabaria por os cortar completamente deste seu fundamental aliado do 5 de Outubro”. Embora o operariado representasse uma reduzida percentagem (5%) da população do país, e se encontrasse partidariamente dividido, a verdade é que se agrupava em associações de classe, coordenadas, até 1919, pela União Operária Nacional, e, depois, pela Confederação Geral do Trabalho, ambas de orientação anarco--sindicalista de influência italiana e espanhola, empenhadas em acabar com o capitalismo, fosse monárquico ou republicano. E em Lisboa, os operários, que tinham ajudado a constituir, até 1910, a base social de apoio do Partido Republicano Português, representavam cerca de 40% da população. Não eram, de todo, inestimáveis.
A República prometera-lhes, nomeadamente, uma jornada de trabalho de oito horas, o direito à greve, o direito de voto, e não lhes dera rigorosamente nada. Mais: quando o operariado se mobilizou para protestar contra os governos da República, foi sempre violentamente reprimido. Recordemos, a título de exemplo, a repressão a tiros de espingarda de que foram alvo os grevistas das conserveiras de Setúbal logo em 1911. Ou, em plena guerra, na Primavera/Verão de 1917, o combate que o governo deu, “com excepcional violência” à “explosão grevista e popular de protesto contra os terríveis efeitos da participação de Portugal no conflito”.
Destes efeitos - carestia de vida, escassez de géneros alimentares, epidemias de gripe e de tifo, milhares de mortos nas trincheiras, açambarcamento de bens essenciais – resultara, entre Maio e Setembro de 1917, como acentua Fernando Rosas, um “convulsivo processo de revolta social e de greves”, a que o governo respondera com prisões massivas de grevistas e encerramentos de sindicatos. Aliás, foi neste contexto que o sindicalismo revolucionário apoiou o dezembrismo. Embora tenha sido sol de pouca dura. Os protestos contra a guerra e as suas dramáticas consequências no dia-a- dia dos mais pobres, para quem “a única coisa que a intervenção na guerra significava era […] um calvário de fome, doença e miséria”, regressaram logo em Março de 1918, agudizaram-se com a tentativa de greve geral de Novembro do mesmo ano, e nunca mais pararam.
Contudo, neste quadro, o operariado ainda se reconciliou – por pouco tempo – com o republicanismo e exigiu na rua a reposição da ordem de acordo com a Constituição aprovada em 1911. Esse apoio do operariado, não impediu, no entanto, que a repressão regressasse durante a ofensiva operária de 1919-1921, que paralisou, durante longos períodos de tempo, alguns dos sectores que ainda permitiam andar a economia do país. O operariado português voltar-se-ia, de novo, para o discurso anarco-sindicalista, que identificava os partidos como agrupamentos da burguesia endinheirada e, deste modo, tornar-se-ia uma ameaça respeitável ao poder político.
Como escreve Oliveira Marques, “atentados à bomba, lutas individuais e assassinatos, muitas vezes com cheiro político, traduziram […] a agitação social desde 1919”. Apesar da “posição oficial de neutralidade dos trabalhadores nas querelas políticas, consideradas assunto «burguês», foram sem conta os operários e os empregados subalternos que participaram nas muitas revoluções e conspirações”.
3.2 A impassibilidade do operariado
Após a «noite sangrenta», a classe dirigente percebeu que era urgente acalmar a contestação nas ruas. Nisto, teve alguma sorte, pois as notícias que iam chegando das reviravoltas na Ucrânia, das concepções leninistas “acerca […] da «ditadura do proletariado»”, que chocavam com o ideário anarquista, bem como “o surgimento […] do partido comunista […] e a cisão que ele operou no movimento operário”, refrearam o movimento sindical.
Desta divisão e de uma certa fraqueza estratégica resultou “o progressivo esgotamento e perda de eficácia das lutas operárias a partir de 1922-1923”, seguindo-se, assim, “um tempo em que as mobilizações sindicais decresceram”. O certo é que esta desmobilização do movimento de contestação social permitiu ao novo governo a implementação de medidas que viabilizaram um certo crescimento económico do país. Este crescimento económico não foi, no entanto, suficiente, para a sobrevivência da República. Embora tenha diminuído a contestação operária, a verdade é que a República teve que defrontar-se com o aumento do terrorismo. A violência tornou-se uma constante nas cidades, devido, nomeadamente, à acção de organizações clandestinas como a «legião vermelha». Ainda que não existissem “formações para-militares ou milícias de tipo fascista em Portugal, nem mesmo associações de ex-combatentes que povoaram a Europa após a Primeira Guerra Mundial, a presença de sectores armados de partidos ou de associações secretas a eles associados cobria praticamente todo o espectro político”.
A recta final da República, nomeadamente o período entre o 18 de Abril de 1925 (movimento militar chefiado pelo general Sinel de Cordes, comandante Filomeno da Câmara e coronel Raul Esteves) e o 28 de Maio de 1926, é ilustrativa do clima de “quase inevitabilidade de uma nova grande mudança política, com inacreditável passividade do campo republicano, expectativa do movimento operário, movimentações e declarações cada vez mais ousadas de natureza antidemocrática.” O operariado, que “em momentos cruciais de ofensiva das direitas” ainda acudiu à República (contra as tentativas de restauração monárquica em 1919 e contra os golpes político-militares das «forças» em 1924 e 1925), assistiu “impassível” ao golpe final na I República.
4. A OPOSIÇÃO DA IGREJA CATÓLICA
A conflituosidade entre a República e a Igreja foi uma constante, por isso a questão religiosa é também relevante no contexto da agonia da I República. Aquando da instauração do regime republicano, a Igreja católica era a grande potência religiosa em Portugal. Havia cerca de seis mil padres, o que correspondia a um padre por cada mil habitantes. O norte e os Açores eram as regiões onde a influência do clero era maior. “A correlação entre as zonas de menor influência clerical e de maior influência republicana era clara”. Não admira, assim, que os republicanos quisessem debelar a influência da Igreja.
Por isso, logo no início, a República assustou alguns padres, cientes de que um dos objectivos republicanos era a separação da Igreja do Estado. Cerca de meio ano depois da instauração do regime republicano já a ‘lua-de-mel’ terminara. Os rumores sobre conspirações aumentavam; os padres manifestavam a sua hostilidade nos púlpitos; e os bispos protestavam contra o ideário republicano. A 20 de Abril (1911), Afonso Costa, através do Ministério da Justiça, respondeu aos descontentamentos da Igreja católica com a Lei da Separação do Estado das Igrejas.
Com esta lei, a República assumiu-se como radical, hostilizou o conservadorismo católico, cortando qualquer possibilidade de aproximação às forças conservadoras. A esquerda monárquica, que planeara adesivar-se na qualidade de direita republicana, afastou-se da República. A Igreja apelou aos sentimentos católicos da maioria da população portuguesa, incitando-a contra a República jacobina e anticlerical. Como tinha ao seu serviço uma imprensa considerável (jornais e revistas), desencadeou um combate sem tréguas ao regime republicano. A Lei da Separação entrou em vigor a 1 de Julho (1911) e com ela a Igreja católica não ficou apenas empobrecida e equiparada a todos os demais credos existentes no país. Ficou “reduzida a uma situação de subserviência frente ao povo católico como jamais tivera no passado, pelo menos no passado português”.
Por outro lado, a lei transformou a propriedade eclesiástica em propriedade nacional ao serviço da Igreja, o que laicizou o Estado e abateu o poderio eclesiástico. Apesar de uma forte resistência da hierarquia eclesiástica, até 1917 a lei foi cumprida, embora, pontualmente se tenha verificado a suspensão de alguns artigos. A liberdade de cultos acabou por se traduzir numa intolerância do Estado sobre o catolicismo, como o país ainda não conhecera e por uma ‘guerra religiosa’ instalada no interior da sociedade.
Este anticlericalismo, como acentua Fernando Rosas, “transcendeu em muito a importante tarefa de modernização cívica que foi a laicização do Estado (princípio da separação, divórcio, registo civil, direitos das mulheres, ensino laico…)” e, além do mais, “instalou uma espécie de neo-regalismo republicano, dando ao Governo o poder de nomear, demitir e castigar os bispos, de censurar as suas homilias, de fiscalizar e policiar as manifestações do culto, chegando a nacionalizar as igrejas e as alfaias”.
De um modo completamente suicidário para a República, o regime respondeu com severidade “aos protestos, às desobediências, às críticas, às conspirações, prendendo, deportando, silenciando jornais, humilhando os dignitários da Igreja católica”. É por demais evidente que a laicização do Estado não exigia que se hostilizassem os sentimentos e as crenças religiosas da grande maioria da população portuguesa, sobretudo a população rural. O anticlericalismo afonsista não percebeu que, deste modo, atingia uma parte significativa da sua base social de apoio: a plebe urbana que escutara e seguira a palavra dos líderes republicanos como se esta fosse palavra de evangelho.
4.1 O ‘magro’ impacto do reformismo sidonista
Como assinala Vítor Neto, a República, apesar de ter estabelecido a liberdade de cultos, não usou de maior tolerância. De acordo com este especialista, o período republicano caracterizou-se por uma “intolerância extrema em virtude do radicalismo da política religiosa levada a cabo por Afonso Costa e pelos seus colegas republicanos”, a qual se pautou por uma conflituosidade religiosa que atravessou toda a sociedade portuguesa e todo o espaço geográfico do país.
Atacada por todos os lados, a Lei da Separação tornou-se um símbolo do jacobinismo da República dos democráticos, antagonizou posições e bipolarizou a sociedade entre conservadores e radicais, esvaziando o centro político – o que só seria atenuado pelo reformismo do governo de Sidónio Pais (1917-1918) - pelo Decreto n.º 3056 de Março de 1918. Mas, mesmo esta revisão sidonista não correspondeu às aspirações clericais. Apesar de ter restituído ao clero parte da sua intervenção nos assuntos do culto, não lhe devolveu a influência política material perdida em 1911. A Igreja não insistiu na recuperação do prestígio perdido, antes decidiu investir noutros campos e aguardar “por melhores dias para pôr fim à odiada lei”.
Como vinha fazendo desde o início da República, e acentuadamente durante a guerra, sobretudo até ao sidonismo, a Igreja “fomentou e enquadrou grande parte […] das conspirações, revoltas, motins e outras formas de luta armada contra a República”. Entre a República e a Igreja, “incapaz de se adaptar”, o combate foi, portanto, “inevitável e permanente”.
4.2 A República à defesa e a Igreja ao ataque
Com a Grande Guerra e a participação de Portugal assistiu-se a um renascimento da influência religiosa, pelo que a ofensiva contra a Igreja Católica acalmou. Porém, era tarde demais, a Igreja percebera que chegara a sua hora. A política anticlerical provocara a alienação do mundo rural e das mentalidades mais conservadoras em relação à República.
O anticlericalismo republicano não só não conseguira diminuir o poder político e simbólico dos católicos, como ainda empurrara para as fileiras conservadoras anti-republicanas a grande maioria das populações rurais, sobretudo do norte e centro de Portugal.
No mesmo contexto, a direita antiliberal, arvorada em defensora da religião e da própria Igreja Católica, ganhara expressão e reforçara “o cerco contra a Lisboa «ateia», grevista e republicana”. A República, “continuamente enfraquecida, passou à defesa e a Igreja ao ataque. Débil, debatendo-se com extraordinárias dificuldades, a República foi, um a um, entregando os trunfos”. A Igreja voltou a ter uma liberdade de movimentos quase total, sem controlo do Estado.
Após o restabelecimento das relações diplomáticas com a Santa Sé (Julho de 1918) e a imposição, pelo Presidente da República António José de Almeida, do barrete cardinalício ao núncio apostólico Achille Locatelli, como apenas faziam os reis, consumou-se a nova aproximação entre o Estado e a Igreja católica.
Entretanto, a Igreja católica reorganizara-se, criara novos organismos, novas devoções, novas fontes de receita (desenvolvendo relações com representantes da alta finança), reforçara a sua imprensa e aproximara-se das Forças Armadas. A partir daí, com a ajuda de uma imprensa bem orientada e preparada para combater com inteligência, o papel da Igreja católica foi trabalhar “até conseguir a vitória final em Maio de 1926”.
De acordo com Vítor Neto, é nas consequências do anticlericalismo para a I República que se enraíza, até hoje, a prudência com que os regimes políticos portugueses lidam com a Igreja católica.
5. A IRA DOS MILITARES
Por último, não podemos deixar de equacionar o contributo dos militares para a queda da I República. De 1914 a 1918, uma parte significativa do exército esteve na guerra nas colónias em África e na frente europeia em França. Algumas expedições fizeram a defesa das colónias de Angola e Moçambique nos quatro anos de guerra e um corpo especial (CEP - Corpo Expedicionário Português) fez a guerra na Flandres nos anos de 1917-1918. No total, eram cerca de 100 mil homens, dos quais dez mil perderam a vida. Todavia, os restantes regressaram a casa, alguns feridos, mas, a maioria retomou as suas ocupações anteriores à guerra, não suscitando problemas dignos de registo e reintegrando-se na ordem social existente no pós-guerra em Portugal.
Os oficiais, no entanto, especialmente os generais, os coronéis, os tenentes-coronéis e os majores, regressaram com folhas de serviço prestigiadas, medalhas, habituados a comandar, e depararam-se com um país em que o poder era dos civis, devidamente alavancado pela classe política. Ainda assim, obrigaram o Estado a incorporar, nas Forças Armadas, cerca de 2000 oficiais milicianos, aumentando, entre 1915 e 1919, de 2600 para 4600 o número total de oficiais. Este problema era tanto mais gravoso quanto, entre 1919 e 1921, devido às intensas e prolongadas greves operárias, bem como à desconfiança dos governos nas Forças Armadas, o Estado reforçara o corpo da GNR (5 mil em 1911; 11 mil em 1922). Como a GNR era considerada “uma defensora urbana do Estado” contra o operariado e contra o exército, este reforço representou “mais um elemento da burocracia associada ao controlo dos democráticos do governo”, e, por isso mesmo, suscitou mais uma tensão corporativa.
O elevado número de militares resultante da intervenção na guerra e da intensificação da crise social, aliado à inflação, provocou uma redução dos seus salários (35,8% em 1918, 22,6% em 1920, 22% em 1921 do que eram antes da Grande Guerra), o que foi responsável pelo aumento das tensões corporativas com os governos republicanos. Nem os subsídios e os privilégios que lhes foram concedidos travaram o seu descontentamento.
5.1 O antagonismo entre a «força armada» e o poder político
“Sem guerras e com as colónias pacificadas e uma estrutura de base incapaz de os absorver”, as elites dirigentes discutiram qual deveria ser o papel dos oficiais na vida civil, porquanto sabiam que os militares – “muitos deles orgulhosos das suas medalhas – constituíam um excedente perigoso, vocacionado para a conquista do poder”. A dor de cabeça dos governantes aumentou devido ao facto da legislação em vigor permitir o seu recrutamento, a sua manutenção em quadros próprios e mesmo a sua integração na carreira militar, e os oficiais de carreira e alguns sargentos terem subido o tom dos protestos por se sentiram preteridos na mudança de patente.
A indisciplina nos quartéis, corrente no período republicano, foi outros dos problemas suscitados pelos militares. As sucessivas insurreições e revoluções, com as consequentes prisões, destituições e descriminações de oficiais e sargentos ainda contribuíram mais para a confusão vivida no sector militar. Aliás, a tomada do poder por Sidónio Pais assentou “num acto generalizado de indisciplina: recusa à mobilização para a guerra”.
No fim da guerra, a instituição militar enfrentou, como assinala José Medeiros Ferreira, três problemas: “as despesas orçamentais, […] o hipertrofiamento dos quadros de oficiais e […] as novas orientações para a política militar em Portugal”. Ainda viram franqueada, um tanto para acalmar as hostilidades, a sua entrada nos órgãos directivos dos partidos, mas, mesmo assim, nunca se reviram na política republicana. Nem a recuperação do seu estatuto social e do seu poder de compra, que começou nos anos de 1920-1921 e, embora não tenha sido constante, prosseguiu até 1930, conseguiram provocar uma inversão da marcha militar.
O golpe de Abril de 1925 evidenciou que os militares não tinham desistido do seu objectivo. Na perspectiva de José Medeiros Ferreira, aqueles problemas implicaram um recolhimento dos militares até 1923 - período em que a República se apoiou na GNR -, mas, a partir daí, tudo pareceu “resumir-se ao antagonismo entre a «força armada» […] e o poder político do Partido Democrático”. Bastou uma diminuição temporária do seu efectivo poder de compra para acertarem o passo na direcção mais temida pelos republicanos – o golpe.
A partir das conspirações de 1925, a pressão dos militares acelerou-se tão claramente que estes não tiveram pejo em agir em nome das próprias Forças Armadas. Só a resistência de algumas unidades militares e da GNR fez abortar a insurreição militar. Esta resistência não impediu que, alguns meses mais tarde, um tribunal militar reintegrasse os insurrectos, e que crescesse o “apelo a um interregno militar na política parlamentar”. Na origem deste apelo estaria, entre outros aspectos, a situação dos militares que não melhorara com a República, agravara-se durante a guerra e jamais regressara ao nível anterior à intervenção de Portugal no conflito mundial.
5.2 A contagem decrescente para o 28 de Maio
Neste ambiente, o republicanismo, apesar de ter “propostas coerentes para responder à crise de fundo que abalava a República liberal”, não teve “força política e militar para as aplicar”. Em nome desta crise que “varria o país e da urgência de remédios excepcionais para a «salvação nacional»”, as elites liberais nacionais renderam-se política e intelectualmente ao nacionalismo autoritário, aceitando uma alternativa militar ao poder estabelecido.
Entretanto, os militares, dado que tinham conseguido repor alguma disciplina nos quartéis e recuperar algum do seu prestígio (nomeadamente através da inauguração de monumentos à participação de Portugal na Grande Guerra), perceberam que começavam a estar reunidas as condições para se revoltarem, pondo fim à I República. A revolta de 18 de Abril de 1925 proporcionou alguma mobilização dos militares e da opinião pública, funcionando como ensaio geral do 28 de Maio de 1926.
Convém, contudo, não esquecer que os militares não incorporavam, como o discurso histórico-ideológico do Estado Novo pretendeu fazer valer, uma instituição “supraclassista e suprapartidária, referência última da legitimidade do Estado, depositário […] das virtudes pátrias, bastião incorruptível do vigor derradeiro da nação enferma”. Eram, antes, uma instituição dividida política e ideologicamente “em várias conspirações e facções que guerreiam, concorrem e se vigiam”.
Na verdade, em 1926, as Forças Armadas encontravam-se tão fraccionadas política e ideologicamente que cada “facção política tinha a sua espada, a sua tropa de confiança”, como conclui Fernando Rosas, para quem, no 28 de Maio “não há uma conspiração militar una, com um comando e um plano centralizado, com uma chefia clara. A conspiração desdobra-se por distintas facções político–militares com os seus chefes próprios, ligados aos apoios político-partidários de que dispõem e às suas respectivas e distintas estratégias, vigiando-se mutuamente e tentando a todo o custo, cada uma delas, ganhar a iniciativa dos acontecimentos”.
Em última análise, os militares foram, como acentua João Medina, os protagonistas de “uma curta comédia de enganos, trepidante carrossel de atarantados […] sequiosos de mando” que, no entanto, levaram a República à cova, enquanto os operários assistiam indiferentes ou resignados – afinal tinham velhas contas a ajustar com os dirigentes republicanos, sobretudo com Afonso Costa, a quem tinham atribuído a alcunha de «racha – sindicalistas».
CONCLUSÃO Se “a História é o romance verdadeiro”, como defende Paul Veyne em Como se escreve a História, neste ‘romance’ sobre a falência da I República sobressai uma ideia muito clara: a participação de Portugal na Primeira Guerra Mundial foi o grande motor de arranque para o precipício que foi o golpe militar de 28 de Maio de 1926.
Não há dúvida de que, depois da implantação da República, é a Grande Guerra que “traça a marca mais profunda na sociedade portuguesa” na segunda década do século XX. Assim como também não restam dúvidas de que, para além da Lei da Separação do Estado das Igrejas, é a guerra que mais afasta a população da República.
Pode não ser possível estabelecer uma relação de causa-efeito entre a nossa intervenção na Grande Guerra e a falência da República – porque, como vimos, há outros factores que também contribuíram para a sua queda - , e pode mesmo concluir-se que a nossa não participação na guerra não nos teria poupado enquanto país nem teria salvaguardado o regime republicano, porque a neutralidade não poupou nenhum país. Todavia, tem de se concluir claramente que a decisão intervencionista e a nossa participação efectiva no primeiro conflito mundial provocou uma catástrofe nacional que foi decisiva para a falência da I República.
Como factor de instabilidade em todos os países envolvidos, a guerra foi responsável por crises monetárias, fomes, epidemias, greves, motins, golpes de Estado e revoluções. Em Portugal, a guerra provocou uma carência generalizada de géneros essenciais, aumento de preços, desvalorização da moeda, racionamentos, aumento da pequena criminalidade – como os assaltos a depósitos de bens de consumo -, confrontos entre a população e as forças policiais, até uma epidemia de gripe pneumónica, empurrando a opinião pública e a população em geral contra a República.
A guerra aumentou os males de que padecia a República. É verdade que, com a participação na Grande Guerra, a República pretendia “consolidar-se no quadro das instituições legais europeias e mundiais”, porém, o confronto político-ideológico entre intervencionistas e anti-intervencionistas abriu várias frentes de confrontação política e social, propiciando o desenvolvimento de um sentimento de tipo antiliberal e anti-republicano.
O sidonismo, “expressão do profundo descontentamento popular com os efeitos da política de intervenção na guerra” é disso exemplo. Tratou-se de uma “primeira tentativa de superar o republicanismo através de um novo tipo de ditadura antiliberal”, que, só não vingou – como sustenta Fernando Rosas – porque “as direitas portuguesas não tinham ainda, não podiam ter, a experiência do que haveria de ser o seu processo de concertação e unificação política e ideológica não só para tomar o poder […], como, sobretudo, para nele se manter e iniciar o processo de transição para um regime autoritário e antiliberal de novo tipo”.
A beligerância de Portugal acabou por transformar-se numa espécie de catalisador de todos os ódios à República e ao sistema liberal, criando as condições propícias à radicalização das correntes antidemocráticas e autoritárias e ao reforço do pensamento antiliberal. Mesmo depois de cessar o conflito, e após a assinatura da paz, Portugal não conseguiu resolver a crise que se instalara no país. Claro que as decisões tomadas em sede da Conferência da Paz, em Paris, entre Janeiro e Junho de 1919, em nada ajudaram a jovem República portuguesa.
O intervencionismo português, que tinha o objectivo claro de reforçar o prestígio internacional da República e de fazer Portugal alcançar “um lugar entre as nações”, acabou por revelar-se “uma típica e suicidária manifestação do voluntarismo republicanista: o desejo de regenerar Portugal a golpes de audácia e de diplomacia – de ideologia -, mas à custa do sacrifício directo e indirecto da imensa maioria para quem a guerra não passava de um morticínio absurdo”.
É por isso que a política guerrista não agradou a ninguém: a unidade nacional não foi conseguida; a elite democrática não conseguiu sobreviver no poder; a instabilidade política agravou-se; a crise económica intensificou-se de forma dramática; a agitação social agudizou-se enormemente; os militares mal equipados e empobrecidos pela Grande Guerra fragmentaram-se; a Igreja, apesar da lei de Afonso Costa, continuou a ser o ‘ópio’ do povo.
Em síntese, podemos concluir o seguinte:
- O espectro político português do pós-guerra caracterizou-se por um aumento do ritmo de queda dos governos. Os governos de coligação, conservadores ou de maioria democrática, foram instáveis, atingindo a mais baixa duração média (91 dias) quando comparados com os governos de um único partido antes da guerra (156 dias). A instabilidade política do pós-guerra foi, no entanto, diferente da que precedeu o conflito mundial. Enquanto no período anterior à guerra, a instabilidade foi criada pelo problema do acesso político, no pós-guerra são as motivações de política económica que estão na origem da instabilidade governativa. O breve consolado sidonista e a fragmentação do sistema partidário são outras das características do panorama político nacional do pós-guerra.
- Em termos económicos, a situação do país agravou-se no pós-guerra. Embora Portugal não tenha sofrido danos graves na sua estrutura produtiva comparáveis aos prejuízos causados pela guerra nos territórios beligerantes, na verdade, viveu a crise da escassez da Grande Guerra, resultante da paralisação dos transportes comerciais e da quebra de abastecimentos de matérias-primas e de combustíveis, e só conseguiu recuperar os níveis de produção anteriores à guerra em 1924. Por outro lado, a confirmação da posse do território colonial pelo Tratado de Versalhes, levou à organização de um novo espaço económico à escala do império e ao consequente fecho da economia nacional sobre si mesma.
- Do ponto de vista social, a participação na guerra também marcou decisivamente o destino de Portugal. A partir do momento da decisão de conduzir Portugal à guerra, os intervencionistas exacerbaram os conflitos sociais internos, afastaram-se, cada vez mais, da sua base social, e confrontaram-se com uma massa da população que exigiu nas ruas o pão que a guerra lhes tirara. Nem o fim do conflito acalmou o descontentamento social. Os anos de 1919-1920 foram terríveis. A contestação social só abrandou depois de 1921 devido à obtenção de melhorias significativas das condições de trabalho, bem como em virtude da comoção nacional provocada pelos assassinatos da «noite sangrenta», a qual funcionou como um aviso para as classes dirigentes.
- A nova conjuntura internacional do pós-guerra, que favoreceu o surgimento de soluções autoritárias, veio também acompanhada de um ressurgimento do sentimento religioso. O auxílio que os católicos prestaram aos militares que tombaram nos campos de batalha, inspirou os sentimentos religiosos da população. Estes sentimentos significaram o princípio do fim da postura anticlerical da República dos democráticos. A Lei da Separação do Estado das Igrejas, que esteve na base da oposição permanente entre a Igreja católica e a República, foi ferida pelo reformismo sidonista e golpeada de morte no pós-guerra, quando se reataram as relações com a Santa Sé e quando o Presidente da República António José de Almeida impôs o barrete cardinalício ao núncio apostólico como só faziam os reis. Mesmo assim, a Igreja católica continuou conspirativa, tão anti-republicana como a República democrática era anticlerical.
- Sobre os militares, a guerra teve também um efeito destabilizador. Desde o início, a estratégia intervencionista provocou uma divisão profunda nas Forças Armadas. Por sua vez, esta divisão agravou a desconfiança do governo nas Forças Armadas. Por isso, o governo criou o CEP, uma força especial constituída por oficiais leais à República, que levou alguns militares a manifestarem-se contra a guerra. De resto, estes militares acabam por viabilizar as ditaduras de Pimenta de Castro (1915) e de Sidónio Pais (1917-1918) e nunca mais aceitaram a política republicana.
Da intervenção na guerra e do fim do sidonismo emergiu um exército dividido e politizado, duplicado em efectivos e aumentado em dirigentes com prestígio alcançado nos campos de batalha. São estes os que não aceitaram, no regresso à pátria, a diminuição do seu nível de vida, devido ao abaixamento dos salários. São os que se envolveram em tensões corporativas sucessivas, primeiro, revoltas e golpes, depois; até ao golpe final de 28 de Maio de 1926 – este organizado pelas diversas facções existentes no seu interior, nomeadamente republicanos conservadores, católicos e integralistas.
Em suma, os dramáticos efeitos políticos, económicos, sociais, religiosos e militares da participação de Portugal na Grande Guerra “agudizaram todas as dificuldades e contradições do regime, precipitando-o numa crise, à qual, em última análise, ele acabaria por não sobreviver”. Foi, neste contexto, que foi possível o golpe militar de 28 de Maio de 1926, perante o qual, tendo em conta a situação descrita anteriormente, “o povo esperava, a Igreja suspirava, a banca respirava e os talassas conspiravam”.
FONTES E BIBLIOGRAFIA
Fontes arquivísticas
Arquivo Histórico – Diplomático do Ministério dos Negócios Estrangeiros, Lisboa
Primeira Guerra Mundial/Conferência da Paz:
Negociações sobre a entrada de Portugal na Guerra. Envio de tropas para França. 1914/1919 – 3.º piso, armário 7, maço 22.
Guerra na Europa. 1916/1917 – 3.º piso, armário 7, maço 20.
A Guerra e as colónias portuguesas, 3.º piso, armário 7, maços 15 e 16.
Angola. Moçambique. Prisioneiros – 3.º piso, armário7, paço 14.
Relatório sobre as relações de Portugal com a Inglaterra durante a Guerra – 3.º piso, armário 6, maço 133.
Proposta de Afonso Costa ao governo inglês para empréstimo a Portugal. 1917/1918 – 3.º piso, armário 8, maço 6.
Dívidas de Guerra de Portugal a Inglaterra. 1914/1926 – 3.º piso, armário 11, maço 330.
Política Internacional Pós-Guerra – 3.º piso, armário 10, maço 25.
Fontes Impressas
Documentos diplomáticos
Documentos apresentados ao Congresso da República em 1920 pelo ministro dos Negócios Estrangeiros, Portugal no conflito europeu, Lisboa, 1920.
Livro Branco Portugal na 1.ª Guerra Mundial (1914 – 1918), Tomos I e II, Ministério dos Negócios Estrangeiros, Lisboa, 1995.
Obras Gerais
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terça-feira, dezembro 04, 2007

João Chagas: A Diplomacia e a Guerra (1914-1918)

Por Noémia Malva Novais
Ministério dos Negócios Estrangeiros (Dezembro, 6, 2006)
Livraria Bertrand, Dolce Vita Coimbra (Março, 27, 2007)
1. De aristocrata leal à Monarquia a defensor da República
Num dos meus primeiros ‘contactos’ com João Chagas - o jornalista, o escritor, o panfletário atrevido, o governante, o diplomata -, dei comigo a pensar como seria possível alguém movimentar-se com interesse numa tão grande esfera de acção.
Só alguns meses depois de iniciar as investigações percebi que estava envolvida num projecto, simultaneamente aliciante e assustador. Assim, ao deslumbramento inicial pela figura de João Chagas, sucederam-se momentos de ora quase euforia, ora quase desânimo.
No entanto, como dizia Antero de Quental, quando a opção é sincera […] há sempre um entendimento possível. A minha opção não podia ser mais sincera, pelo que percebi que tinha de me entender com João Chagas, porque a sua vida e a sua obra eram (e são ainda) merecedoras de estudo aprofundado.
O Nobel José Saramago diz no seu livro “A Bagagem do Viajante” que nunca foi “afecto a essa vaidade necrófila que leva tanta gente a pesquisar o passado, buscando os ramos e os enxertos da árvore que nenhuma botânica menciona – a genealógica”. Entende Saramago que “cada um de nós é, acima de tudo, filho das suas obras, daquilo que vai fazendo durante o tempo que cá anda”.
Ora, sem pretender discordar do nosso Nobel da Literatura, a verdade é que tentei ir à raiz da árvore genealógica de João Chagas. Sabendo que nascera no Brasil, empreendi contactos com as instituições brasileiras que se me afiguravam como as mais apropriadas para o efeito, até averiguar que os elementos que procurava se encontravam na Cúria do Rio de Janeiro.
Quando pensava que tinha descoberto o caminho para o passado brasileiro daquele que então já considerava como um dos grandes portugueses de sempre, esbarrei num outro problema. Os arquivos da Cúria estão organizados pelo primeiro nome, neste caso João, pelo que teria de investigar todos os nascidos de nome João do ano 1863.
Apercebendo-me da impossibilidade de obter a pretendida certidão de nascimento, tentei averiguar com a máxima exactidão, pelo menos, o dia do seu nascimento, uma vez que nos apontamentos publicados a seu respeito é possível encontrar as datas de 1, 2, 3 e 4 de Setembro de 1863. Optei pelo dia 1 de Setembro por diversas razões mas fundamentalmente porque é a data indicada por Alfredo de Mesquita, o autor que escreveu uma obra que, embora sintética e laudatória, é a mais completa sobre João Chagas.
Mas, na realidade, através das incursões genealógicas não consegui ir para além dos pais de João Chagas. Porém, com o desenvolvimento das investigações concluí que João Chagas não precisava, efectivamente, desses pergaminhos familiares. O nosso diplomata é um daqueles vultos do republicanismo que pode ser considerado um “filho das suas obras”.
Nascido no seio de uma família de emigrantes liberais, perdeu os pais quando ainda era criança, pelo que teve que defrontar-se com a vida sem amparo nem guia, nem conselhos. Por isso, desde cedo, sentiu necessidade de conferir a si próprio uma espécie de auto-tutela, que “não foi omissa nem de tino, nem de zêlo activo, nem de prudência severa”. Do exercício pontual, sem branduras nem deslizes, dessa tutoria enraizou-se na sua personalidade uma certa rispidez.
Na verdade, quando outros, aos 20 anos, eram caloiros em Coimbra, João Chagas iniciava-se no jornalismo e, servido por uma intuição pronta e clara, delineava ele mesmo o programa da educação do seu espírito. Afirmava-se, com naturalidade, como um ser secretamente inspirado, que persuadia sem discutir, pois invalidava a réplica com os seus argumentos.
Foi com essa mesma clareza que percebeu, aquando do Ultimato inglês de 11 de Janeiro de 1890, que a Monarquia estava agonizante. Ele que era um aristocrata, de origens liberais, tradicionalmente leais à Monarquia, um jornalista “relativamente indiferente à questão do regime político, quando não mesmo simpatizante das instituições monárquicas”, rompeu com a tradição familiar e deixou-se seduzir pelos ideais republicanos, vindo a situar-se entre os vultos que em artigos sucessivos publicados nos jornais A República, A Justiça Portugueza e A República Portugueza imputaram ao Trono todas as responsabilidades da intimação britânica, preparando o clima febril de que sairia a tentativa revolucionária do 31 de Janeiro de 1891.
Durante os últimos anos da Monarquia, João Chagas afirmou-se, portanto, como um jornalista conceituado, um panfletário agressivo, um implacável demolidor da Monarquia.
2. De jornalista a diplomata e governante
Após a implantação da República, em 5 de Outubro de 1910, foi o primeiro chefe de missão de 1.ª classe a ser nomeado para uma Legação de Portugal, no caso Paris.
Já na capital francesa, lia minuciosamente os jornais portugueses e franceses e seguia obstinadamente, e quase sempre com grande angústia, o que se passava na vida interna da República portuguesa e nos bastidores da política internacional, sobretudo o que se referia às nossas colónias. Chegou mesmo a procurar que Câmara Reys fizesse eco, entre nós, da situação internacional de Portugal e da necessidade de se fazer uma nova política e de todos colaborarem na sua definição e implementação.
João Chagas estava convencido de que a atitude da Inglaterra para com Portugal era de “expectação” e de que o nosso destino, como nação colonial, dependia apenas do que lhe mostrássemos que éramos capazes de fazer. O império colonial, cobiçado por várias nações estrangeiras, só podia ser salvaguardado se a República abrisse o país e as colónias.
Ciente de que a República despertara interesse nos meios financeiros da Europa, alertava que as nações estrangeiras esperavam de Portugal novas iniciativas, que viabilizassem o ressurgimento material do país e criassem um regime de porta aberta aos capitais estrangeiros. Como a República não dava esses sinais, o nosso ministro em Paris receava que as colónias se perdessem.
Durante os primeiros meses de actividade diplomática, João Chagas deu ainda especial atenção ao perigo de restauração monárquica em Portugal. É disso testemunha a correspondência frequente trocada entre Paris e Lisboa, designadamente entre João Chagas e Bernardino Machado, à época ministro dos Negócios Estrangeiros. Bernardino Machado estava determinado a averiguar o que faziam os conspiradores em território francês e o nosso diplomata mantinha-o permanentemente informado.
Bernardino Machado respondia às informações de João Chagas com novas indicações. Rogava-lhe que insistisse junto do governo francês e da Schneider, no sentido de Portugal conseguir adquirir um ou mais navios e diverso material de guerra. Havia uma enorme preocupação em apetrechar as forças militares portuguesas, no sentido de garantir a defesa das nossas fronteiras marítimas e terrestres. O risco de uma insurreição monárquica dominava grande parte dos seus espíritos.
O facto de ambos estarem atentos ao perigo de uma tentativa de restauração monárquica em Portugal fez com que a missão de João Chagas na Legação de Paris, decorrida até ser chamado, em finais de Agosto de 1911, a formar o primeiro Governo constitucional da República, se desenrolasse, essencialmente, em torno de duas questões principais: a vigilância dos conspiradores em território francês e as sucessivas tentativas de aquisição de material de guerra. João Chagas foi bem sucedido em ambas.
Entretanto, foi chamado a presidir ao primeiro Governo constitucional, porque o Presidente da República Manuel de Arriaga entendia, claramente para travar a influência crescente de Afonso Costa, que este primeiro ministério não deveria integrar elementos do Governo Provisório, antes devendo ser constituído “fora das dissidências e perturbações partidárias”. Ora, um governo de unidade republicana, que precisava do apoio das massas populares, só podia ser presidido por uma figura eminentemente popular que não estivesse comprometida com nenhuma das facções que germinavam no PRP. O perfil tinha as medidas de João Chagas.
Apesar de sentir que seria o maior sacrifício da sua vida, enviado extraordinário em Paris aceitou a nova missão, acreditando que podia impedir “por sua própria força e autoridade que as lutas internas do partido degenerassem numa guerra aberta” e que podia contribuir para a aceitação do regime republicano pela comunidade internacional.
Abandonou a diplomacia em Paris para assumir a presidência do Ministério, a 3 de Setembro de 1911, certo de que recebia uma pesada herança. Conhecia as dificuldades que iria encontrar para governar um país com oito séculos de tradição monárquica, uma República recente, uma classe política heterogénea, um PRP a dividir-se, uma situação económica catastrófica, um índice de analfabetismo assustador e um sério perigo de eventuais tentativas de restauração monárquica.
Perante a impossibilidade de formar um governo de concentração, devido à recusa de Afonso Costa, numa tentativa de conciliação nacional, constituiu um Ministério com personalidades das diferentes facções republicanas: camachistas, almeidistas, independentes (todos do Bloco) e até o adesivo, Diogo de Melo Leote, a quem entregou a pasta da Justiça; convidou Duarte Leite para as Finanças; Pimenta de Castro para a Guerra; João Duarte de Meneses para a Marinha; Augusto de Vasconcelos para os Negócios Estrangeiros; Sidónio Pais para o Fomento; e Celestino Pais de Almeida para a nova pasta das Colónias.
Sabia que contava com a oposição parlamentar do grupo maioritário do antigo PRP, mas, mesmo assim, era sua intenção pacificar a vida parlamentar da República e, com essa pacificação, governar o país com tranquilidade. No discurso de posse deixou claro que a sua maior preocupação seria a manutenção da unidade moral da família republicana.
No entanto, como mais tarde escreveu, em carta ao seu amigo Câmara Reys, quando tomou conta do governo, “não era possível um ministério de concentração. Estava ainda muito acesa a briga provocada pela desgraçada questão da presidência.
João Chagas fez o “sacrifício de aceitar o poder para ganhar tempo e facilitar, senão uma reconciliação impossível, o entendimento que veio a dar-se”. As duas facções – radical e moderada – eram, efectivamente, irreconciliáveis.
Quando, em plena comemoração do primeiro aniversário da implantação da República, ocorreu a primeira incursão monárquica no norte do país, o Ministério de João Chagas foi o alvo preferido dessas facções. Embora o pequeno grupo de guerrilheiros monárquicos, que entrou em Portugal pela Galiza, tenha sido forçado a retirar pelas tropas fiéis ao governo, esta primeira incursão teve uma implicação determinante no breve prosseguimento da governação.
O período de 70 dias durante o qual João Chagas se aguentou no governo (até 12 de Novembro) serviu para evidenciar a sua forma de governar e o seu desapego face ao poder.
Deste primeiro Ministério ficou a memória de um governo, no qual João Chagas foi “assistido por um antigo adepto do ditador deposto em Fevereiro de 1908 e dois futuros ditadores, o de Janeiro a Maio de 1915 e o de Dezembro de 1917 a Dezembro de 1918”, ou seja, os dois ditadores que viriam a subverter o regime republicano: o general Pimenta de Castro e o futuro major Sidónio Pais. É por isso que se defende que pode ser encarado como aquele que mais directa e coriaciamente combateu as três ditaduras que precederam a do 28 de Maio de 1926.
Deixando a política aos políticos, as facções aos facciosos, João Chagas entendeu que para bem servir a República deveria regressar à diplomacia em Paris. Mantendo o seu pensamento na política interna da República, vigiou pessoalmente e através do pessoal da Legação e de alguns dos cônsules em França, as movimentações dos conspiradores monárquicos em território francês. Esta vigilância apertada dos conspiradores não impediu, no entanto, a segunda incursão monárquica ocorrida a 9 de Julho de 1912 em Portugal e prontamente reprimida.
3. O mais radical intervencionista
Entretanto, em pleno Verão de 1914, quando a Europa entrou em guerra, uma guerra que todos julgavam breve mas que se prolongou por quatro anos, João Chagas, em Paris, confrontou-se, no dia em que a guerra eclodiu, com a “psicose da guerra”.
Era sábado, 1 de Agosto, Paris, “sussurrava como o mar”. Depois de um fim-de-semana em que a habitual “efervescência apaixonada, sucedeu ao exame de consciência, o rendez-vous surdo e instintivo da vida com a morte”, o nosso ministro em França foi surpreendido com um considerável número de portugueses que pediam o repatriamento e por outros tantos que procuravam saber a posição de Portugal face à guerra que se avizinhava ou apenas queriam instruções sobre o modo de agir num país estrangeiro em estado de guerra.
João Chagas tranquilizou, na medida possível, os portugueses. De seguida, recebeu Aquilino Ribeiro que se encontrava em Paris após uma deslocação prolongada à Alemanha. A posição de Portugal perante a guerra dominou o encontro entre o diplomata e o escritor nesse e nos dias seguintes.
Aquilino Ribeiro confrontou-o com a possibilidade de Portugal declarar a beligerância, se não a declarara ainda. João Chagas sossegou-o, mas, de seguida, sobressaltou-o quando lhe disse: “Portugal ainda não declarou a beligerância […] todavia, é urgente que a declare. É uma questão de decoro e de independência. Se quer viver, se quer ser alguém no concerto da Europa futura, apresse-se a entrar em guerra com o pouco que tem, com o pouco que puder dar, contra os Impérios Centrais”.
Entre os dois não havia qualquer possibilidade de consenso. Aquilino Ribeiro defendia a neutralidade absoluta. João Chagas assumia categoricamente a sua intenção: “De hoje em diante tomo a peito levar o meu país à guerra”. O escritor debateu-se interiormente para encontrar a causa “necessária”, em nome da qual se poderiam – e passo a citar - “despachar para o matadoiro os pobres, ignorantes e pacíficos labregos”.
Este episódio entre João Chagas e Aquilino Ribeiro, antes da eclosão da guerra e longe de Portugal, prefigura uma metáfora quase perfeita do que viria a ser a questão fundamental da atitude de Portugal perante a guerra: o consenso nacional nunca conseguido; a abertura de uma clivagem profunda nunca superada, que atravessou toda a sociedade portuguesa e opôs “guerristas” e “anti-guerristas”; uma polémica política violenta que atravessou a opinião pública, a instituição militar, os partidos e o próprio poder político.
A questão de intervir ou não na guerra, “o grande pomo da discórdia da primeira República”, colocou em confronto os intervencionistas (também designados aliadófilos/guerristas) e os anti-intervencionistas (também denominados anti-guerristas). Para os aliadófilos, a participação na guerra ao lado da Inglaterra “reanimaria a velha aliança e quebraria o isolamento de Portugal”.
Os principais defensores do intervencionismo eram os republicanos democráticos que constituiam a maior força política do país e dominavam o aparelho de Estado. Os anti-intervencionistas, defensores da neutralidade, eram, sobretudo, os monárquicos, os republicanos unionistas, alguns sectores do exército e a maioria do país “que se opunha naturalmente à participação num conflito cujas causas lhe escapavam”.
Mas por que queriam tanto os guerristas, entre os quais se destaca João Chagas, levar Portugal para o conflito na Europa? Não era, podemos afirmá-lo com certeza, um desejo sórdido. Era, antes, um desejo grandioso de ver Portugal e a República em pé de igualdade com as grandes nações europeias, em oposição à Espanha neutral.
Para a generalidade dos intervencionistas, como João Chagas, a decisão da guerra, tanto militar como política, aconteceria não em África mas na Europa, daí que defendesse a intervenção no teatro de operações europeu. Quanto ao perigo espanhol, o diplomata defendia que o equilíbrio ibérico deveria ser alterado de forma a tornar-se mais favorável à posição portuguesa.
Ora acompanhemos o seu raciocínio: a Espanha declarara-se neutral mas mantinha boas relações com a França, o que nos oferecia garantias de boa vizinhança mas diminuía o nosso papel diplomático em Paris. Portugal só poderia ultrapassar esta situação de inferioridade se declarasse a sua solidariedade à França, dado que este país precisava de confiar nos dois países ibéricos.
João Chagas desejava também que Portugal se tornasse o interlocutor privilegiado da França na Península. Só que o governo de Lisboa não entendeu até onde esta proposta poderia levar o país, nomeadamente em matéria colonial e europeia. Cegamente fiel à aliança inglesa, o governo da República não foi capaz de equacionar outras ‘alianças’, confiante que a sua solidariedade para com a Inglaterra já o aproximava da França.
A estas questões de política externa somam-se as razões de política interna. Não podemos esquecer que também em Portugal era necessário consolidar e legitimar o regime republicano para conseguir governar com estabilidade política. As incursões monárquicas de 1911 e 1912 tinham sido o sinal de que não fora possível integrar todos os portugueses na República e as constantes demissões e substituições governativas provavam que havia divisões internas e rivalidades entre os partidos que surgiram da divisão do PRP.
A estratégia intervencionista “assumia objectivos de ordem externa como a garantia da integridade colonial em África, a soberania nacional face à Espanha e a conquista do prestígio internacional do regime”. Mas “perseguia igualmente objectivos de ordem interna” e aproveitou a conjuntura internacional criada pela guerra, pois “só uma ameaça externa e uma intervenção militar na guerra em larga escala poderia justificar o sacrifício de todas as fracturas e facções internas em função do interesse e da unidade nacional”.
Para João Chagas, se Portugal se mantivesse neutral nada ganharia. Se, pelo contrário, declarasse a beligerância e entrasse na Guerra ao lado das potên­cias aliadas, teria uma oportunidade única para exigir a recompensa quando che­gasse o momento da paz. Mantendo uma neutralidade condicional, como defendia Freire de Andrade, o ministro dos Negócios Estrangeiros português de 1914, Portugal só alcançaria a vergonha e perderia a oportunidade de alcançar um lugar entre as grandes nações europeias.
Foi por estar indignado com esta ambiguidade que, em Setembro de 1914, decidiu deslocar-se a Lisboa e envolver-se pessoalmente numa teia de contactos diplo­máticos, cujo teor ou as omissões das negociações nos desafiam a admitir, como muito provável, a hipótese de João Chagas ter sido um dos principais motores de arranque da intervenção de Portugal na Guerra, enfim, o mais radical belicista de 1914 como acentua Soares Martinez.
Senão vejamos: ao receber, a 1 de Setembro de 1914, a notícia de que o Presidente da República e o governo da França iam deixar Paris, dirigindo-se para Bordéus, onde seria instalada a capital francesa, tendo em conta o risco da cidade de Paris ser ocupada por tropas alemãs, João Chagas decidiu imediatamente seguir também para Bordéus. Daí, a 3 de Setembro, partiu para Lisboa, a fim de debater pessoalmente com Freire de Andrade, a posição de Portugal perante a Guerra.
Nestes primeiros dias de Setembro, sob o estatuto internacional de ambígua neutralidade, continuava em Portugal “a polémica entre radicais e moderados sobre a estratégia nacional perante a Guerra”. João Chagas não concretizara os seus intentos belicistas através das diligências diplomáticas efectuadas junto do ministério dos Negócios Estrangeiros, pelo que estava decidido a não regressar ao seu posto em Paris se Portugal não definisse inequivocamente a sua política face à Guerra.
Chegado a Lisboa, dirigiu-se ao ministério dos Negócios Estrangeiros, a fim de conferenciar com Freire de Andrade, reiterando-lhe que pretendia que “o país tivesse uma situação clara, que era necessário definir por meio de instrumentos diplomáticos a posição do país. Freire de Andrade garantiu-lhe apenas que a situação portuguesa estava perfeitamente concertada com o governo inglês.
Vendo que o governo não definira uma orientação para a Guerra, limitando-se a seguir as instruções de Londres, João Chagas promoveu, a partir desse momento, em Lisboa, uma discreta campanha, uma acção diplomática paralela. Avistou-se duas vezes com o ministro inglês, Lancelot Carnegie, a quem, habilidosamente, acusou a pouca transparência da política inglesa para com Portugal e reuniu uma vez com o representante da França, M. Deaschner. Registou pormenorizadamente, no seu Diário, as conversações com Freire de Andrade (a 11 de Setembro) e as entrevistas com Lancelot Carnegie (a 11 e 12 de Setembro).
Sobre o encontro com o ministro da França, na tarde de 12 de Setembro, não anotou quaisquer pormenores, cingindo-se a referir que o embaixador francês o acolheu com “larga simpatia, encantado com Portugal e com os sentimentos de carinho pelo seu país”.
Notou que a sua fisionomia irradiava contentamento, pelo facto das notícias da França serem “cada vez melhores”, uma vez que “depois do seu arrogante avanço sobre Paris”, os alemães voltavam para trás em derrota. São aspectos pouco interessantes, exceptuando a retirada alemã, sobre uma reunião com o embaixador do país que, três dias depois, pediria auxílio a Portugal, motivando a nossa alteração de atitude perante a Guerra.
Perante a notícia de que o Conselho de ministros entendera que a atitude de ambígua neutralidade era a melhor, João Chagas estampou no seu Diário o seguinte comentário: “Não insisti, porque espero ainda acontecimentos que obrigarão talvez o Governo a modificá-la. Os meus esforços têm de ser pertinazes mas discretos”.
Afinal, que acontecimentos aguardava João Chagas? Uma revolução não era certamente, porquanto, quando se encontrava em Bordéus afiançou à Capital que já fizera “bastantes revoluções” e defendeu que Portugal precisava de ordem. A que acontecimentos, susceptíveis de modificarem a atitude de Lisboa se referia o plenipotenciário em França?
Acreditamos que João Chagas teria feito diligências diplomáticas junto do representante da França em Lisboa (eventualmente confidenciais, motivo pelo qual não as terá anotado no Diário) e esperava que os seus esforços desencadeassem os acontecimentos que obrigariam a uma mudança de atitude.
Uma vez que não era possível um consenso - pois “os radicais, tendencialmente francófilos, [procuravam] uma estratégia autónoma de afirmação nacional e participação paritária, no quadro da Entente; os moderados, claramente anglófilos, [procuravam] uma colaboração bilateral, discreta e oficiosa, com a Inglaterra” – o governo português foi surpreendido, a 15 de Setembro, com o pedido de auxílio francês.
João Chagas terá sido apanhado de surpresa? O que o levou, no dia do pedido francês, ao ministério dos Negócios Estrangeiros? Confrontado com o pedido de armamento e com a intenção portuguesa de auxiliar a França, desde que o armamento seguisse com “as tropas para o manejar”, João Chagas não comentou nem o pedido francês nem o auxílio português.
O mesmo Freire de Andrade que se disponibilizou a ceder as armas e os homens - e se Portugal o fizesse tornava-se beligerante – tardou na comunicação do pedido francês a Londres, indubitavelmente porque o ministro da Guerra, general Pereira de Eça, entendeu que, no exército, produziria a mais penosa impressão ir só artilharia e serem menos apreciadas as outras armas”. O governo inglês apoiava o envio de artilharia para a França e Portugal desejava que o pedido de auxílio fosse feito pela Inglaterra nos termos da aliança.
A exigência de Pereira de Eça transformou a hipótese de compra de armamento num pedido de auxílio, que se traduzia no empréstimo das peças de artilharia. O pedido francês “e a sequela diplomática que culmina com o pedido inglês constituiriam para Portugal a primeira possibilidade de alteração do seu estatuto internacional. Tornar-se-ão pretexto para luta entre as estratégias radical e moderada, ao nível da política interna e originarão a primeira tentativa de pôr fim à neutralidade e às primeiras hesitações da beligerância”.
Onde estava João Chagas enquanto esta situação se desenrolava? Regressara a França, convicto de que Portugal entraria, brevemente, em Guerra. Em que apoiava o embaixador, radicalmente intervencionista, esta convicção? Estamos em crer que a fé de João Chagas residiria no facto de ter acordado, com o ministro da França em Lisboa, a estratégia para a participação de Portugal na Guerra, a qual partiria do pedido de armamento ao governo da República portuguesa.
Entre o pedido de auxílio francês, a organização do Corpo Expedicionário Português, as negociações com a Inglaterra no âmbito da aliança e a entrada efectiva de Portugal na guerra decorreu cerca de um ano e meio. Portugal só se tornou beligerante, como é sabido, após a declaração de guerra da Alemanha. O nosso destino na guerra das trincheiras também já é sobejamente conhecido.
4. O intelectual fiel aos ideais maçónicos
Feita a Guerra, havia que fazer o rescaldo. Para Portugal, este rescaldo foi dramático, deixando registadas nos anais perdas humanas, materiais e morais. Para João Chagas só a Conferência da Paz nos podia salvar da tempestade trazida pela guerra. Assim, em Janeiro de 1919, Portugal entrou na Sala dos Espelhos do Palácio de Versalhes, como um dos 70 delegados das 32 nações vencedoras que, durante os meses seguintes, iriam redigir o Tratado de Paz.
Cheio de sonhos e de ilusões, Portugal entrou com um punhado de exigências e saiu quase de mãos a abanar. Salvámos a nossa integridade colonial. Mas foi tudo. Em Portugal, instaurou-se o clima propício para os eurocépticos defenderem o destino brasileiro e africano do país. Insatisfeitos com os resultados da Confe­rência da Paz, a economia destruída pela guerra e as perdas humanas presentes na memória, os portugueses defenderam então a não intromissão de Por­tugal na Sociedade das Nações.
João Chagas, mais uma vez, não receou ouvir a voz da sua consciência. Já integrara a Delegação Portuguesa à Confe­rência da Paz presidida por Afonso Costa e voltou a juntar-se-lhe na Sociedade das Nações. O entendimento do nosso diplomata em Paris era simples: tínhamos sido derrotados na guerra e esquecidos na Paz, por isso tínhamos a obrigação de ir à procura do prestígio entre as nações.
Mas também aí nos escapou a glória tão ambicionada por João Chagas para Portugal. Para a História, acabou por ficar a memória de um Portugal injustiçado (no momento da partilha dos benefícios de Guerra) mas, em certa medida, co-responsável por essa injustiça. Quer por ter avaliado incorrectamente a “correlação entre os objectivos e os meios”,
quer também por à “ambição e largueza de vistas” do projecto intervencionista de João Chagas (e de outros intervencionistas) não ter correspondido o sentimento de unidade nacional que Portugal deveria ter conquistado em face do perigo comum que se avizinhava com a Guerra.
João Chagas sobressai, como referiu Alfredo Pimenta, como “um historiador que tem a felicidade de se encontrar dentro da história e a interroga”. Um republicano para quem os partidos não interessavam e para quem, em primeiro lugar, estava a República, sinónimo de pátria e de nação.
João Chagas era um intelectual que ousou, mais que uma vez, procurar o aperfeiçoamento da República. Há nele uma espécie de diálogo a quatro - o jornalista, o escritor, o político e o diplomata. Deste diálogo sobressai o homem, fiel aos princípios maçónicos, sempre em busca da clarificação das linhas iniciáticas e da revelação dos segredos que permitiriam a Portugal agigantar-se e transcender-se.